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No documento, deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS) afirma que o Poder Judiciário tem repetidamente extrapolado suas funções com decisões arbitrárias.
No requerimento de criação da CPI, o deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS) afirma que o Poder Judiciário tem repetidamente extrapolado suas funções com decisões arbitrárias.| Foto: Marian Ramos/ Câmara dos Deputados

A iniciativa de deputados indignados com o “apagão” da liberdade de expressão que toma conta do Brasil já há alguns anos pode dar ao país uma oportunidade que tem lhe sido negada tanto pelos protagonistas desse apagão quanto por aqueles que teriam o dever de se colocar como contrapeso a eles. O deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) conseguiu as assinaturas necessárias para a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de investigar abusos cometidos por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O pedido de abertura foi protocolado na quinta-feira, dia 23, e a jurisprudência do próprio Supremo, reafirmada mais recentemente no caso da CPI da Covid, afirma que, uma vez cumpridos os requisitos constitucionais – número mínimo de assinaturas, prazo certo e fato determinado a ser apurado –, os presidentes da Câmara ou do Senado não podem recusar a instalação.

Por mais que muitas comissões acabem transformadas em espetáculo, como foi o caso da própria CPI da Covid, uma CPI do Abuso de Autoridade, se bem conduzida, faria um grande favor ao Brasil. Não se trata, como em comissões anteriores, de investigar condutas que seus autores gostariam de manter ocultas. O caso, aqui, envolve atos que tiveram ampla divulgação, tanto por parte dos responsáveis por eles quanto da imprensa – com a exceção daqueles trechos dos inquéritos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias digitais” que permanecem cobertos por um sigilo pouco ou nada justificável. Mais que uma investigação propriamente dita, seu mérito está na intenção de levar à sociedade brasileira um esclarecimento a respeito daquilo que já se conhece.

O verdadeiro sentido da liberdade de expressão se perdeu, especialmente entre os que têm a obrigação constitucional de defendê-la, caso do STF, e os que têm a obrigação moral de lutar por ela, como formadores de opinião e entidades da sociedade civil organizada

Afinal, nem os ministros do Supremo ou do TSE, nem os setores da sociedade civil e da opinião pública que aplaudiram os atos recentes das cortes (ou, na “menos pior” das hipóteses, se omitiram diante deles) defendem restrições ou agressões à liberdade de expressão – ao menos assim esperamos. Pelo contrário: protagonistas e espectadores sempre julgaram estar protegendo essa liberdade ou coibindo abusos dessa liberdade. O mais perto que se chegou de aceitar que havia algo heterodoxo em curso veio em julgamentos no TSE nos quais se mencionou a existência de um “arco de experimentação regulatória” ou de uma “situação excepcionalíssima” que justificaria certas medidas, mas ainda assim elas foram defendidas como sendo tomadas em nome da proteção da democracia e da liberdade de expressão.

Isso significa que o verdadeiro sentido da liberdade de expressão – e de outras garantias constitucionais violadas ao longo dos três inquéritos e da campanha eleitoral – se perdeu, especialmente entre os que têm a obrigação constitucional de defendê-la, no caso dos ministros, e os que têm a obrigação moral de lutar por ela, como formadores de opinião e entidades da sociedade civil organizada. Recuperar este verdadeiro sentido até que ele volte a ser um consenso evidente é imprescindível se queremos a pacificação do país. O requerimento de abertura da CPI demonstra essa consciência de que há algo muito errado com a forma como as cortes se dispuseram a fazer essa “defesa” da democracia e das liberdades.

“Nos últimos anos e de forma acentuada nos últimos meses, foram inúmeras as violações de direitos e garantias individuais contra cidadãos brasileiros, políticos e também contra pessoas jurídicas, perpetradas por ministros das cortes superiores; ou seja, perpetradas justamente por aqueles que teriam o dever de garantir o pleno exercício desses direitos e não de violá-los”, escreveu Van Hattem no requerimento de abertura da CPI. Tais violações não datam apenas da recente disputa eleitoral; já vêm ocorrendo desde que o Supremo instaurou o abusivo inquérito das fake news, em que a corte se atribuiu o papel múltiplo de vítima, investigador, acusador e julgador – o primeiro caso de censura, aplicado à revista Crusoé, data de 2019.

Entre os fatos listados por Van Hattem estão a perseguição a empresários pelo “crime” de dar opinião em grupos privados de WhatsApp, os bloqueios de contas bancárias de pessoas físicas e jurídicas que estariam supostamente apoiando ou participando de manifestações diante de quartéis, e as decisões que censuraram pessoas e veículos de comunicação, inclusive esta Gazeta do Povo. E uma rápida passada de olhos pela Lei de Abuso de Autoridade mostra que algumas das ações ali definidas como crime efetivamente fizeram parte da ofensiva antidemocrática representada pelos inquéritos abusivos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias digitais”: pensemos, por exemplo, nas condutas descritas nos artigos 27 (“Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”), 30 (“Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”), 31 (“Estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado”), 32 (“Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”) ou 36 (“Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”) da referida lei.

O silêncio ou o aplauso de parte da sociedade brasileira ao longo desses inquéritos se explica, em boa parte, pelo fato de as decisões costumarem ter como alvo apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que tinha (e ainda tem) a antipatia dessa parcela da sociedade. Aproveitando-se do fato de a eleição já ter passado, uma CPI bem conduzida, sem paixões partidárias, pode ser o impulso de que muitos brasileiros precisavam para finalmente aperceberem-se da gravidade de tudo o que foi feito nos últimos anos, com a relativização ou o desprezo puro e simples de garantias constitucionais que incluem não apenas a liberdade de expressão, mas também o devido processo legal e a imunidade parlamentar. Em outras palavras, acordar a sociedade brasileira desse “sono da razão” que ajudou a “produzir monstros”, como na gravura de Goya já citada pela Gazeta neste espaço.

O Judiciário não tomou a iniciativa de levar adiante a necessária distensão após este processo eleitoral altamente polarizado – pelo contrário, continua interessado no confronto e na intimidação. É necessário que os ministros sejam chamados à razão

E, se essa CPI pode abrir os olhos daqueles que ignoraram as ameaças antidemocráticas em nome do antibolsonarismo, ela também pode reacender a esperança de todos aqueles que, sim, perceberam os abusos em curso, mas julgavam ser impossível frear os impulsos autoritários do STF e do TSE, ou já haviam perdido a fé nos seus representantes eleitos. A mera instalação da CPI já seria um sinal inequívoco de que as vias institucionais continuam abertas, que o sistema de freios e contrapesos segue funcionando, que não é preciso buscar soluções de força. A democracia brasileira sairia indubitavelmente fortalecida de um processo como este.

Infelizmente, o Judiciário não tomou a iniciativa de levar adiante a necessária distensão após este processo eleitoral altamente polarizado – pelo contrário, continua interessado no confronto e na intimidação, como mostra a intempestiva e desproporcional resposta de Alexandre de Moraes a uma ação da coligação de Bolsonaro que pedia a impugnação de mais da metade das urnas eletrônicas usadas no segundo turno. Assim, é necessário que os ministros sejam chamados à razão, e a CPI pode finamente ser o instrumento que permitirá que isso ocorra – ainda que ela fique para o início da próxima legislatura, já que existe uma controvérsia sobre os prazos e sobre as dificuldades de funcionamento durante o recesso em caso de instalação imediata da comissão. Ela merece a mobilização dos brasileiros; o eleitor precisa demonstrar que apoia os deputados que já assinaram o requerimento de abertura, e pressionar os que ainda não o fizeram, pois certamente haverá muitos interessados em enterrar essa investigação, inclusive dentro da Câmara – um deputado do PSD até já acionou o STF em um “ataque preventivo” contra a CPI que ainda não existe. Mas o Brasil quer e precisa dela.

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