Uma investigação digna do nome sobre o combate à Covid-19 no Brasil estaria buscando, com serenidade e sem julgamentos precipitados, informações importantes sobre as negociações do país para a obtenção de vacinas, sobre o que realmente aconteceu em momentos trágicos como a crise da falta de oxigênio em Manaus, sobre os acertos e erros nas medidas restritivas ao funcionamento dos negócios, sobre o destino do dinheiro federal enviado a estados e municípios. No entanto, o que mais salta aos olhos a quem acompanha os trabalhos da CPI no Senado é o despreparo, a arrogância, o preconceito e a busca por holofotes que norteiam vários dos seus integrantes.
Para muitos dos senadores ali presentes, importa menos a verdade que a publicidade, ainda que isso represente bater boca com colegas – o que tem ocorrido com bastante frequência – e humilhar depoentes, especialmente (mas não apenas) quando eles integraram o governo federal ou manifestam alguma afinidade com as posições do presidente Jair Bolsonaro ou do Ministério da Saúde. Nos últimos dias, a agressividade dirigiu-se especialmente a duas profissionais da área médica chamadas a participar de sessões da CPI: Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi.
Como Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi estão ao lado do governo, oposicionistas e ditos “independentes” se viram autorizados a submetê-las a todo tipo de interrupções e desrespeito
As duas médicas são defensoras do chamado “tratamento precoce” e estão mais alinhadas com a posição do governo federal. Isso bastou para que oposicionistas e ditos “independentes” se vissem autorizados a submetê-las a todo tipo de interrupções e desrespeito, a ponto de o Conselho Federal de Medicina (CFM) ter enviado uma nota ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), condenando o tratamento dado às profissionais. Não se trata de simples corporativismo: qualquer um que assista aos vídeos das sessões da CPI – concorde ou não com as profissionais a respeito do “tratamento precoce” – percebe que as médicas foram alvo de todo o cardápio de termos cunhados para descrever o menosprezo pela mulher em um debate, como “mansplaining” e “manterrupting”. O movimento feminista só não se levantou em massa para “cancelar” os senadores porque as vítimas estão ao lado do governo, diferentemente de outra médica chamada a depor: Luana Araújo, contrária ao “tratamento precoce” e tratada com muito mais civilidade pelos membros da CPI.
O interrogatório de Nise Yamaguchi foi especialmente constrangedor, e teve como um dos protagonistas o senador Otto Alencar (PSD-BA). Abusando da grosseria, Alencar transformou suas perguntas em teste de conhecimentos gerais e, mesmo recebendo respostas corretas da imunologista, retrucava alegando que ela estava enganada e que ela “não sabia de nada”. A certa altura, Yamaguchi respondeu acertadamente, e três vezes – tantas eram as interrupções agressivas da parte de Alencar –, o nome de um teste para detecção da Covid; na sequência, o senador afirmou que ela havia errado a resposta e que o termo correto era... justamente o que a médica havia usado. A cegueira e a vontade de humilhar não impediram que Alencar errasse dados da taxonomia do Sars-CoV-2, enquanto Yamaguchi oferecia a informação correta.
Apesar dos erros grotescos, Alencar foi celebrado nas mídias sociais por “desmascarar” Yamaguchi. Uma narrativa bizarra que só se explica pela idêntica cegueira ideológica dos que a espalharam, bem como pela confusão que tomou a agressividade do senador como mera assertividade, enquanto o tom de voz baixo, mais introvertido, da médica era lido como sinal de que ela estaria acuada, como se fosse possível captar quem está certo ou errado apenas pela entonação. A serenidade de Yamaguchi, aliás, também foi alvo de grosserias do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), que disse à médica: “A senhora falando assim pode dar a impressão que está com a razão”.
A atitude dos senadores da CPI em relação a Nise Yamaguchi não foi criticada apenas pelo CFM, mas também pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e pelo grupo Médicos pela Vida. E com toda a razão, já que, ainda que a médica estivesse na CPI na condição de convidada, acabou tratada como os acusados nos julgamentos teatrais realizados por governos totalitários, como bem lembrou o colunista da Gazeta do Povo Flavio Gordon. CPIs já prestaram e podem continuar prestando serviços valiosíssimos ao país, mas, se a busca pela verdade é deixada a cargo de pessoas desqualificadas, cujo apreço pela verdade é nulo, o resultado fica muito longe de atender aos interesses da nação.