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Editorial

Prisão e teatro na CPI

Ex-servidor Roberto Ferreira Dias é conduzido pela Polícia Legislativa após a ordem de prisão feita pelo presidente da CPI.
Ex-servidor Roberto Ferreira Dias é conduzido pela Polícia Legislativa após a ordem de prisão feita pelo presidente da CPI. (Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

Para que ficasse completo o espetáculo de uma CPI que tem à frente pessoas sem estofo moral para conduzir uma investigação digna do nome, e que já tirou suas conclusões antes mesmo de apurar os fatos, só faltava uma prisão em flagrante, ao vivo, para que todo o país pudesse presenciar o momento. Pois nem isto mais falta, desde que o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), deu voz de prisão ao ex-diretor do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias na sessão de quarta-feira, dia 7. “Ele [Ferreira Dias] está mentindo desde cedo e tem coisas que não dá para admitir (...) chame a Polícia do Senado. O senhor está detido pela presidência da CPI”, disse Aziz, encerrando a sessão. Ferreira Dias foi libertado após pagar fiança de R$ 1,1 mil.

O ex-diretor tinha sido acusado de pedir propina em uma suposta negociação para compra de vacinas da AstraZeneca intermediada pela empresa Davati, que seria representada pelo policial militar Luiz Paulo Dominguetti. Para justificar a prisão, Aziz afirmou que Ferreira Dias mentira à CPI quando disse que seu encontro com Dominguetti havia sido um acaso, já que o policial militar tinha gravações afirmando a uma terceira pessoa, intitulada “Rafael”, que tinha uma reunião marcada com Ferreira Dias – os áudios dessa conversa já estavam em posse da CPI, que apreendera o celular de Dominguetti em 1.º de julho.

Ainda que Ferreira Dias tenha mentido ou seja culpado daquilo de que é acusado, o crime e a mentira precisam ser combatidos com as ferramentas do direito, não do arbítrio

A versão de Ferreira Dias se tornou, de fato, bastante frágil diante dos áudios de Dominguetti – embora seja preciso ressaltar que Dias é mencionado nas conversas, mas não participa delas, o que foi questionado pelo depoente quando recebeu voz de prisão. E o próprio papel do PM ainda exige maiores esclarecimentos, já que a AstraZeneca já havia afirmado não trabalhar com nenhum intermediário, negociando diretamente com os governos e com o consórcio Covax, da OMS. De qualquer forma, há uma série de circunstâncias que tornam o ato de Aziz bastante problemático. Uma delas é regimental, pois a sessão do Senado já estava aberta, com a leitura da ordem do dia, e isso exigiria a suspensão dos trabalhos da CPI antes que ocorresse o episódio da prisão. O presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no entanto, ignorou os pedidos de senadores governistas para que a prisão fosse anulada, alegando que se tratava de ato do presidente da CPI, e não da comissão.

E diversos juristas vêm apontando o fato de Dias ter sido quase que induzido pela CPI a se incriminar, o que seria ilegal. O ex-diretor estava sob compromisso – e não juramento, como até as mídias oficiais do Senado chegaram a informar – de falar a verdade, e comparecia como testemunha, não como investigado. No entanto, como afirmou a juíza Ludmila Grilo no Twitter, se em determinado momento fica evidente “que a testemunha tem envolvimento com o fato em apuração (...) cabe ao juiz retirar-lhe o compromisso de dizer a verdade” e permitir que ela fique em silêncio em nome do direito à não autoincriminação – a advogada de Ferreira Dias indagou Aziz sobre isso, afirmando que, se o ex-diretor estava sendo investigado, ela lhe recomendaria ficar em silêncio; o presidente da CPI simplesmente ignorou o questionamento. Por fim, Aziz chegou a dizer que Ferreira Dias estava preso “por perjúrio”, crime inexistente no Código Penal brasileiro, que pune apenas o falso testemunho, descrito no artigo 342; o deslize, é verdade, não chega a surpreender, apenas mantendo a tradição inaugurada por outro membro da CPI, Otto Alencar (PSD-BA), que errou até a taxonomia do coronavírus na tentativa de constranger a médica Nise Yamaguchi.

A defesa de Ferreira Dias foi ao Supremo Tribunal Federal para anular a prisão do ex-diretor, alegando que houve “abuso de autoridade” da parte do presidente da CPI. Mesmo se não for possível encaixar o episódio na definição legal de abuso estabelecida pela lei (bastante ruim, é preciso lembrar) aprovada tempos atrás pelo Congresso, há, sim, elementos que permitem ver erros na construção das circunstâncias que levaram à prisão. Isso não significa afirmar que Ferreira Dias não mentiu, ou que seja totalmente inocente daquilo de que é acusado – tais conclusões só virão com o aprofundamento das investigações –, mas apenas que o crime e a mentira, quando existirem, precisam ser combatidos com as ferramentas do direito, não do arbítrio.

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