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Diz-se que duas histórias resumem todas as outras já contadas, seja na literatura, nos noticiários, no cinema ou ao pé dos berços. Uma é a do filho que à casa torna e é regado com festa e inveja. A outra é a do homem que dá a vida para salvar os seus. Se a afirmação estiver correta, é para ouvir falar de pródigos e redentores que milhares de pessoas acorrem hoje a suas igrejas, em todos os cantos do mundo. A paixão é universal. Render-se a ela é humano.

A contar pelos dados do documento Religião e sociedade em capitais brasileiras, organizado em 2006 pelo pesquisador carioca César Romero Jacob, apenas 200 mil pessoas em Curitiba e região metropolitana não se identificariam de alguma maneira com os acontecimentos da Sexta-Feira Santa. Seriam elas os 5,4% que se declaram sem religião e os 3,1% pertencentes a cultos não cristãos.

De tão grandiloquente, o número de crentes poderia se converter numa espécie de índice social. Seria natural utilizar dados religiosos à maneira do que se faz com as taxas de pobreza e de violência. O que não ocorre, à revelia de a fé ser um elo quase tão forte quanto pertencer a um mesmo país, falar uma única língua e ter um passado comum – um lugar onde vivem chapas como Tiradentes, dom Pedro I e Getúlio Vargas.

A explicação para o pouco caso com o fenômeno religioso é simples. Religião mete medo. Rejeita-se a "propaganda da fé" em busca de convertidos. Teme-se a cruz e a caldeirinha. Foram, afinal, muitos os cismas, os embates teológicos, as crises iconoclastas. Ao perceber o sem-número de igrejas, acotovelando-se nas periferias, impossível não pensar na possibilidade de uma guerra santa na Isaac Ferreira da Cruz ou na Avenida Brasília. Para não dar folga para o perigo, resta a velha cautela: melhor enquadrar a religião na categoria foro íntimo, ou aplicar-lhe o infalível "é que nem gosto: não se discute".

Uma pena. Ao longo do século 20, deixou-se de acender fogueiras para resolver as diferenças dogmáticas entre as confissões, liberando a conversa até para a hora do jantar. No lugar de apaixonados colóquios sobre a salvação pela graça, a religião vingou como canal para pensar os direitos humanos, a justiça social e os valores – para citar três traduções cívicas do cristianismo.

Parte disso se deve ao movimento ecumênico, uma das grandes reviravoltas provocadas pelo Concílio Vaticano II. Mas por algum mistério, todo avanço religioso das décadas de 50 e 60 não foi o bastante para que as confissões fossem de fato incluídas como parte da agenda pública. Padres e pastores falam às multidões, vão aos rincões mais distantes, têm poder de influência, são orientadores espirituais, psicólogos ao alcance de todos, gerenciam equipamentos urbanos privilegiados – como paróquias e centros sociais. Mesmo assim, suas ações são equiparadas muitas vezes às de uma ONG ainda em cueiros.

Não é raro, contudo, encontrar nas ações sociais mais avançadas a presença de religiosos. Eles trazem para a pastoral a experiência na administração de colégios, a prática democrática das comunidades, o espírito cristão e boas doses de desapego – necessárias para suportar as provações da caridade, como já foi chamada, impedindo que se transforme num braço da burocracia e do estatismo. O movimento segue de tal forma que fica difícil não pedir aos céus que o poder público faça mais parcerias com as igrejas. E vice-versa.

Não se trata de uma operação caseira. Exige perícia. Igrejas não querem virar band-aids do Estado nem perder a identidade para outros credos. Mas se pode afirmar que no quesito "viver juntos", católicos, protestantes e espíritas, entre outros, já camelaram bem mais do que 40 anos no deserto. Ser religioso é mais do que ser piedoso e devoto – é ser coletivo, é enfrentar os extremos e os excessos individualistas. O amor ao próximo, por tabela, sobrevive menos como prática paroquial e mais como solidariedade global. E se não o é assim 100%, já que há de se lidar com a alienação das seitas, é inegável que a mentalidade religiosa deu passos largos "desde que o mundo é mundo", como se diz.

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