É com perplexidade, assombro e indignação que muitos brasileiros têm visto tornar-se realidade o poema de Camões em que os maus nadam “em mar de contentamentos”, enquanto os bons passam “no mundo graves tormentos”. E nada exemplifica tão bem este estado de coisas quanto o desfecho dos maiores esquemas de corrupção da história do país, o mensalão e o petrolão. Praticamente todos os envolvidos na roubalheira ganharam a liberdade e voltaram às ruas; alguns deles até mesmo conquistaram cargos eletivos dos mais importantes do país.
Enquanto isso, aqueles que investigaram e julgaram os escândalos, trabalhando por anos a fio para construir um conjunto probatório robustíssimo ou avaliando essas mesmas provas para que os corruptos pudessem pagar, são perseguidos de todas as formas: se ainda não acabaram eles mesmos na cadeia, sofrem com uma série de outras punições políticas, cíveis e administrativas – o episódio mais recente foi aquele em que o Tribunal Superior Eleitoral fez uma interpretação extensiva, absurda do ponto de vista lógico e totalmente distante do espírito da Lei da Ficha Limpa, para impugnar a candidatura de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e retirar-lhe o mandato de deputado federal.
A indignação das pessoas, embora pareça pouco, é fundamental para recolocar o Brasil nos trilhos.
Atribuir esta inversão de valores apenas à série recente de decisões da cúpula do Judiciário que desmontaram o bom combate à corrupção, no entanto, é ignorar que há causas mais profundas para o que temos visto, causas das quais o suicídio moral dos tribunais superiores é talvez a consequência mais evidente – mas, ainda assim, uma consequência. O fato é que, após uma lufada de esperança trazida por um processo iniciado nas jornadas de junho de 2013 (que, depois, acabaram desvirtuadas pela violência) e pela Operação Lava Jato, a sociedade brasileira se deixou engolir por um torpor que misturou tolerância à corrupção e desconfiança generalizada em relação aos que empenharam suas vidas e carreiras no combate à ladroagem.
Nada exemplifica tanto essa tolerância quanto a normalização da candidatura de Lula à Presidência. Os eleitores de Lula – e aqui não nos interessa discutir as motivações que levaram cada um a optar pelo então candidato – não podem alegar que desconheciam o passado do petista. Ainda assim, de repente, foi como se o robustíssimo e inegável conjunto probatório levantado contra Lula pela Operação Lava Jato tivesse “desaparecido”, em vez de ter sido simplesmente tornado inútil para efeitos processuais.
É preciso recuperar critérios claros de moralidade, de certo e errado, e pautar nossas ações de acordo com esses critérios.
E o reverso desta tolerância com o mal se mostrou na forma como esses mesmos setores da sociedade e da opinião pública se voltaram contra quem lutou para desmontar os esquemas de corrupção. O “infeliz do povo que precisa de heróis” brechtiano foi pisado e repisado a ponto de muitos brasileiros passarem a enxergar com suspeita qualquer um que se empenhe em fazer a coisa certa. Como se fosse impossível a alguém agir apenas movido pelas melhores intenções, sem ter algum motivo escuso ou empregar métodos ilícitos. Isso ajuda a entender como até mesmo brasileiros bem-intencionados, conscientes do mal trazido pela corrupção, puderam se deixar levar por narrativas enviesadas, plantadas pelos corruptos e por seus apoiadores, que transformaram os agentes da lei em criminosos, e os verdadeiros criminosos em vítimas.
Neste ambiente em que as noções de certo e errado são perdidas – ou, pior ainda, invertidas –, não surpreende que decisões judiciais reflitam essa decadência moral. Ironicamente, essa espécie de hiperlegalismo pelo qual as evidências contra Lula são ignoradas apenas porque foram descartadas judicialmente convive com um total desprezo pelo império da lei, substituído pelo voluntarismo total. Quando se trata dos protagonistas dos esquemas de corrupção, os tribunais superiores revertem jurisprudência e entendimentos anteriores, aplicam retroativamente regras estabelecidas ad hoc para anular julgamentos realizados em estrita observância à lei processual, e alteram competências previamente estabelecidas – ou seja, onde não existe nenhum tipo de irregularidade processual, inventa-se uma.
Já quando os acusados são aqueles a quem coube investigar e julgar a ladroagem, tribunais superiores e instâncias como o Conselho Nacional do Ministério Público e o Tribunal de Contas da União ignoram o devido processo legal e garantias constitucionais como a liberdade de expressão; violam princípios como o non bis in idem, julgando mais de uma vez o mesmo fato; recorrem a evidências colhidas ilegalmente e sem autenticidade comprovada; ignoram o que está escrito na lei e se apegam a suposições e hipóteses sobre o que poderia ter acontecido, em vez do que realmente aconteceu; e desprezam os pareceres técnicos de órgãos de assessoria ou pedidos de arquivamento feitos por procuradorias.
Há solução para tamanho descalabro? Certamente há; extremamente trabalhosa, que talvez renda frutos apenas no médio e longo prazo, mas há. Para isso, é preciso recuperar critérios claros de moralidade, de certo e errado, e pautar nossas ações de acordo com esses critérios. Nesse caminho, um dos primeiros passos é manter acesa a chama da indignação contra os desmandos a que assistimos, não aceitar passivamente que eles se repitam cotidianamente, e encontrar formas de manifestar e dar voz, ativa e democraticamente, a essa indignação.
Casos como o da cassação de Deltan Dallagnol e a tentativa de apagamento de seu trabalho junto à Lava Jato, por exemplo, não podem ser encarados com uma mera indignação passageira. Eles precisam ser entendidos como realmente são: sintomas de uma inversão de valores generalizada que precisa ser combatida todos os dias até ser revertida de vez. A indignação das pessoas – ou pelo menos daquelas que, de fato, se preocupam com os rumos do país –, embora pareça pouco, é fundamental para recolocar o Brasil nos trilhos. Não nos calemos.
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