• Carregando...
 | Fabio Rodrigues Pozzebom
Agência Brasil
| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil

Em mais um movimento temerário no seio do inquérito ilegal e abusivo aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar “fake news” e injúrias, difamações e calúnias que atingem a “honorabilidade e a segurança” do tribunal, o ministro Alexandre de Moraes mandou retirar do ar uma reportagem da revista Crusoé, divulgada também pelo portal O Antagonista, segundo a qual o empreiteiro Marcelo Odebrecht teria apontado que o presidente do STF, Dias Toffoli, é o “amigo do amigo do meu pai” na famigerada planilha da empresa. Embora a decisão não possa ser classificada como censura, ela carrega graves equívocos jurídicos.

Neste sábado (13), tivemos a oportunidade de discutir, por ocasião da condenação em primeira instância do humorista Danilo Gentili, o justo limiar entre a liberdade de expressão e a proteção da honra no tocante à liberdade de opinião e de crítica. Neste caso, estamos diante da mesma questão, mas agora no que diz respeito à “liberdade de crônica”, ou seja, à liberdade de noticiar e narrar fatos que podem ser desabonadores à honra dos indivíduos. Embora o conflito seja o mesmo, há critérios específicos que devem ser observados e nos quais a decisão de Moraes sequer chegou a esbarrar. 

Não se deve, aqui, exigir a plena convicção do fato antes que se possa noticiá-lo

Como regra geral, ninguém tem o direito de reproduzir versões ou suspeitas de fatos que sejam difamatórias ou caluniosas contra algum indivíduo. Nesses casos, quem escolhe divulgar tem o dever de apurar (por exemplo, se determinado indivíduo praticou um crime), para que se forme uma convicção acerca da veracidade do fato, e não apenas de uma ou outra versão que se conta dele. Se o conjunto probatório não for suficiente para gerar essa convicção, a prudência recomenda que se abstenha de divulgá-lo. No entanto, quando se trata de pessoas públicas ou de temas de interesse público, mesmo as suspeitas já são relevantes, justamente por permitir que os temas sejam tratados com transparência no debate público e que as autoridades competentes tomem as providências necessárias para investigar essas suspeitas. Nos casos em que há interesse público, portanto, a veracidade do que se narra deve ser analisada em seus próprios termos, ou seja, ela diz respeito, por exemplo, a alguém ter feito alguma denúncia ou haver algum documento que indique uma suspeita – e não à plena convicção de que existe um fato ilícito. Em suma, não se deve, aqui, exigir a plena convicção do fato antes que se possa noticiá-lo. 

Ora, a reportagem da revista Crusoé faz exatamente isso, uma vez que não imputa este ou aquele crime a Dias Toffoli, nem sequer ações concretas além do que revelam as fontes obtidas pelos repórteres. Os autores se fiam em documentos cujas imagens se veem reproduzidas na matéria, que mostram uma troca de e-mails entre o empreiteiro Marcelo Odebrecht, e Adriano Maia, ex-diretor jurídico da empresa. Nela, Odebrecht pergunta “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?”, e Maia responde: “Em curso”. O relato jornalístico conta então que Marcelo Odebrecht enviou, na terça-feira (9), um documento à força tarefa da Operação Lava Jato, em Curitiba, afirmando que o “amigo do amigo do meu pai”, um velho mistério da planilha da Odebrecht, é “José Antonio Dias Toffoli”, hoje presidente do STF e, em 2007, quando da troca de e-mails retratada, advogado-geral da União. Odebrecht, porém, diz que o teor das conversas só pode ser elucidado por Maia. 

Nossas convicções: Liberdade de Expressão

Leia também: O justo limiar entre honra e liberdade de expressão (editorial de 13 de abril de 2019)

A reportagem segue explicando a linha de investigação da Lava Jato sobre a usina de Belo Monte e rememora o histórico profissional de Dias Toffoli para explicar porque ele teria sido apelidado de “amigo do amigo do meu pai”, isto é, amigo do ex-presidente Lula da Silva, no jargão da planilha da empreiteira. Ao final, a reportagem ainda tem o cuidado de dizer que “como advogado-geral da União, Toffoli tinha a atribuição de lidar com o tema. Até por isso, não é possível, apenas com base na menção a ele, dizer se havia algo de ilegal na relação com a empreiteira”. A publicação informa também que o presidente do STF foi procurado para comentar o assunto, mas não respondeu. 

O ministro Alexandre de Moraes, porém, não analisou nenhuma dessas dimensões, apegando-se a uma questão lateral, orientado por mensagem eletrônica do presidente Dias Toffoli, para imputar à reportagem a pecha de “fake news” e atrair para si a competência de investigá-lo no inquérito ilegal e abusivo que apura esse tema no STF. Em determinado momento da reportagem, seus autores afirmam que uma cópia da mensagem de Odebrecht foi enviada à Procuradoria-Geral da República (PGR) – já que Toffoli tem foro privilegiado – “para que ela avalie se é o caso ou não de abrir uma frente de investigação sobre o ministro”. Ocorre que, na sexta-feira (12), a PGR divulgou uma nota negando ter recebido qualquer material da Força Tarefa ou do delegado que preside o inquérito. Disso, Moraes extrai a razão para mandar excluir todo o conteúdo da reportagem, quando, na verdade, só confirma o ponto que expusemos acima: se realmente Marcelo Odebrecht prestou essa informação e a PGR não a recebeu, o que a reportagem faz é permitir que Raquel Dodge peça os esclarecimentos necessários à primeira instância. 

Leia também: O Supremo se equivoca (editorial de 08 de abril de 2019)

Leia também: Agenda positiva é a melhor resposta que o STF pode dar a seus críticos (editorial de 22 de março de 2019)

A posição que equilibra a liberdade de crônica e a proteção da honra com base nos critérios do interesse público e da veracidade do relato, além de ser a que melhor protege os bens em jogo, é praxe no Brasil. No contexto das grandes operações contra a corrupção, já houve notícias muito mais desabonadoras sobre agentes públicos divulgadas pela imprensa. Aliás, basta lembrar que já tivemos a divulgação de denúncias de corrupção contra um presidente da República, no exercício do mandato, e nenhum tribunal cogitou tirá-las do ar. Não faria sentido alterar esse entendimento tradicional apenas porque se trata do presidente do STF – ao contrário, seria dar a ele um privilégio imoral e antirrepublicano. Ainda mais preocupante é que essa decisão equivocada tenha sido dada a pedido do próprio Toffoli – e no bojo de um inquérito, como já discutimos nesse espaço, absolutamente ilegal e abusivo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]