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“Os direitos de reunião, manifestação e associação, com fins lícitos e pacíficos, são reconhecidos pelo Estado sempre que sejam exercidos com respeito à ordem pública e ao acatamento das diretrizes estabelecidas pela lei”, diz o artigo 56 da Constituição de Cuba. Não que os cubanos realmente acreditem no que ali vai escrito – como, aliás, é o caso de quase todo o capítulo sobre “direitos” da carta aprovada em 2019, entre os quais estão os de “não ser submetido a desaparecimento forçado, torturas nem maus-tratos ou penas cruéis” (artigo 51), o de “entrar, permanecer, transitar e sair do território nacional” (artigo 52) ou a “liberdade de pensamento, consciência e expressão” (artigo 54). Mas um grupo de cubanos resolveu testar o valor do texto constitucional, e com isso mostrou que, no regime ditatorial que escraviza a ilha há décadas, a lei não é o que está escrito, mas o que o Partido Comunista quer.
Os integrantes da plataforma digital Archipélago, criada depois dos grandes protestos de rua de 11 de julho, pediram permissão às autoridades de várias cidades para a realização de uma manifestação pacífica em 20 de novembro, depois remarcada para 15 de novembro quando Havana resolveu organizar exercícios militares justamente na data escolhida pelos ativistas. Era a primeira vez que os mandatários tiveram de lidar com um pedido que invocava o artigo 56 da Constituição, mas que não era um ato chapa-branca, e sim uma manifestação “contra a violência, para exigir o respeito pelos direitos de todos os cubanos, a libertação dos presos políticos e a resolução das diferenças por meios democráticos e pacíficos”.
No regime ditatorial que escraviza Cuba há décadas, a lei não é o que está escrito, mas o que o Partido Comunista quer
Sem surpresa, governos municipais recusaram todos os pedidos com a mesma argumentação, a de que o ato era uma “provocação” financiada pelo governo norte-americano (o que os organizadores negam) com o objetivo de desestabilizar o governo e forçar uma mudança de regime, o que seria inconstitucional, já que a carta também diz, no artigo 4.º, que “o sistema socialista é irrevogável”. O prefeito de Havana chegou ao cúmulo de afirmar que a Constituição tinha sido aprovada em referendo por 86,85% de eleitores que escolheram o socialismo “de maneira livre e soberana”, como se houvesse qualquer possibilidade de voto livre na ilha do partido único.
Corajosamente, os promotores do ato de 15 de novembro não se deixaram intimidar pela resposta negativa – que, muito provavelmente, já era esperada por eles, que sabem melhor que ninguém com que tipo de ditadura estão lidando. “Nossa decisão é que vamos marchar. Não estamos convocando. Vamos marchar e com aqueles que quiserem participar”, disse Yunior García Aguilera, um dos líderes da plataforma Archipélago. Eles sabem que, desta vez, não terão a seu favor o elemento surpresa, e que a resposta do prefeito de Havana mencionou, ainda, que o povo cubano, ao referendar a Constituição, também aprovou “o direito de combater por todos os meios qualquer um que tente derrubar a ordem política, social e econômica estabelecida”, o que, aos olhos dos comunistas, legitimaria uma repressão igual ou maior que a promovida em 11 de julho e nos dias subsequentes.
Infelizmente, sanções internacionais e a pressão das democracias ocidentais jamais conseguiram dobrar Fidel Castro, seu irmão Raúl e o atual ditador, Miguel Díaz-Canel, até porque sempre houve nações dispostas a financiar o regime cubano, incluindo o Brasil governado pelo PT. E, como toda ditadura comunista que se preze, também Cuba tratou de enfraquecer seu povo – fisicamente e moralmente – para que não se levantasse contra os que o escravizam. Os manifestantes do 11 de julho foram buscar forças onde muitos já acreditavam não haver mais nada, e gritaram por liberdade. Havana tentará calá-los novamente, e eles precisarão de todo o apoio, dentro e fora do país, para que continuem tendo voz.