A capital ignora a agressividade do mercado imobiliário e nega a urgência de uma política de patrimônio mais rígida
Difícil um olho que não arregale quando alguém informa a um "forasteiro", como se dizia que a capital paranaense "não tem" lei municipal de tombamento. O próximo passo do ouvinte é querer saber como é que se consegue preservar alguma coisa sem a mão pesada dos instrumentos legais. A resposta, não raro ufanista e à curitibana, corre solta ou corria.
Uma das glórias da política de patrimônio da cidade atende pelo nome de "unidade de interesse de preservação", ou simplesmente UIP, sigla familiar por aqui, fórmula um dia perfeita para dizer que é possível preservar sem ter de enfrentar os rigores do tombamento. Funcionou, de fato, durante uma década. Houve até quem tentasse copiar em sua cidade. Mas eis que se acabou o que era doce. De meados dos anos 2000 para cá, a política das UIPs recebeu um golpe baixo atrás do outro. A dizer. Desmantelou-se a equipe do Ippuc que fazia o corpo a corpo com os mais de 600 donos de unidades. O serviço que realizam era a alma do negócio: convenciam os proprietários de que preservar era o melhor a fazer. Recursos como o "potencial construtivo" criado para que proprietários levantassem dinheiro para tintas, madeiramento e restauros foram banalizados, passando a ser usados pela própria prefeitura a torto e direito. Para fechar a conta, imóveis importantes como a fábrica do Matte Leão, no Rebouças, e casas modernistas, capítulo considerável do nosso patrimônio foram ao chão graças à vista grossa dos gestores públicos. O preço foi a descrença no modelo que antes causava orgulho.
O resto veio a galope. Sem vantagem pelo ônus de manter um prédio antigo em pé, donos de imóveis deram de se render ao canto da sereia do mercado imobiliário. Como foi noticiado por esta Gazeta do Povo, cinco casas registradas como UIPs foram derrubadas nos últimos anos, sempre nos conformes, com alvarás expedidos pela Justiça. As razões do Judiciário não são segredo: os homens e mulheres de toga consideram as UIPs uma política exótica, uma caduquice. A cada autorização dada às picaretas, os juízes regurgitam que o programa da prefeitura é regido por decretos, não por uma lei. Esse é o calo. Lembram que os inventários feitos para o patrimônio não convencem nem a Velhinha de Taubaté. E que, diante de tantas evidências de que alguma coisa está fora de ordem, só lhes resta reconhecer o direito dos proprietários, que cada vez mais recorrem à Justiça, pleiteando o direito de vender seus imóveis para incorporadoras. Patrimônio público? Só se for a Catedral e a Praça Tiradentes. A sensação de guerra perdida é flagrante.
Esse dossiê parece o bastante para que gregos e troianos concordem que já passa da hora de criar uma lei municipal de tombamento, reconhecendo que as UIPs não dão mais conta do serviço. Mas não. Há uma lei tinindo, pronta para ser mandada à Câmara de Vereadores, à espera de uma ordem de expedição. O bonde não anda. Fontes ouvidas pela Gazeta justificam a demora. Alegam que o projeto tem lacunas legais. E que falta convicção da prefeitura de que a lei possa servir de panaceia para o passado. Em outras palavras, o Ippuc tem saudade do decreto que rege as UIPs, por considerá-lo uma vanguarda que projetava o instituto, digamos, na Sorbonne e redondezas. O drama é que, enquanto isso, a cada martelada de um juiz, vão-se as paredes, os beirais e as esperanças.
Tudo indica ser possível conciliar uma lei de tombamento e a modernidade proposta pelas UIPs. Ao mesmo tempo em que alguns exemplares extraordinários seriam totalmente preservados, conjuntos de casas e mesmo fachadas poderiam ser regidos por normas mais brandas. No mais, sem lei não há como conter os efeitos da jurisprudência, que promete derrubar mais e mais unidades de interesse daqui para a frente. Mesmo com esse argumento azeitado por especialistas em patrimônio, a nova legislação curte uma gestação prolongada.
À boca pequena, uma das explicações para tanta manha é que Ippuc e Fundação Cultural de Curitiba estariam em disputa para ver quem é que vai tomar conta do patrimônio. Uma reedição das UIPs seria de fato conveniente ao Ippuc que cuida do planejamento e pode se expandir lidando ele mesmo com o passado, a depender das conveniências. Já para a pobre Fundação Cultural, sem lei não há solução. A Secretaria de Cultura não teria como se impor. A briga faz sentido. O que não faz sentido é ver tanta casa cair. Mas, para quem vê a casa cair, esse impasse não tem a menor graça.