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Editorial

O crime organizado vai a Brasília

Luciane Barbosa Farias
Encontros de esposa de líder do Comando Vermelho com secretários do Ministério da Justiça não foram divulgados nas agendas oficiais. (Foto: reprodução/Instagram Luciane Barbosa Farias)

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Das muitas bizarrices com que o atual governo já presenteou o país, poucas são tão surreais quanto os encontros e audiências da mulher de um dos principais traficantes da Região Norte do país – ela mesma já condenada criminalmente em duas instâncias – com secretários do Ministério da Justiça, sem que seu nome aparecesse nas agendas oficiais. A reação de ministros e parlamentares que se uniram na crítica virulenta a quem apontasse, como qualquer pessoa de bom senso faria, que o episódio está muito mal contado apenas acrescentou uma segunda camada de absurdo a toda uma história que precisa urgentemente de investigação mais detalhada.

O que se sabe, até o momento, é que Luciane Barbosa Farias é casada com Clemilson dos Santos Farias, o “Tio Patinhas”, chefe do Comando Vermelho no Amazonas – ela nega ser integrante da facção, embora também seja apontada como tal. Ambos já foram condenados pela Justiça, a 10 e 31 anos respectivamente; ele está preso em Tefé (AM), por ter contra si ordem de prisão preventiva, mas ela recorre em liberdade da condenação por lavagem de dinheiro, associação para o tráfico e organização criminosa. Como já foi condenada em segunda instância, Luciane também estaria provavelmente atrás das grades, se não fosse a decisão de 2019 do Supremo Tribunal Federal que acabou com o início do cumprimento da pena após condenação por colegiado; livre, ela aproveita a oportunidade para circular com desenvoltura em Brasília, colecionando fotos e declarações de apoio de parlamentares. Em 19 de março, se encontrou com Elias Vaz, secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça; em 2 de maio, esteve com Rafael Velasco Brandani, titular da Secretaria Nacional de Políticas Penais.

O caso das visitas de Luciane exige apuração criteriosa para que saibamos se o tráfico simplesmente se aproveitou de protocolos bastante falhos do Ministério da Justiça, ou se estamos diante de uma conivência de setores do governo com o crime organizado

O ministro Flávio Dino reagiu ameaçando processar jornalistas e promovendo uma onda de bloqueios no X (ex-Twitter). Seu colega Silvio Almeida (da pasta de Direitos Humanos), parlamentares petistas e de outras legendas de esquerda, e até o presidente Lula cerraram fileiras em torno de Dino, acusando a “extrema direita” de “fake news”. No entanto, o jornal O Estado de S.Paulo, o primeiro a divulgar o caso, jamais afirmou, por exemplo, que Dino tivesse se encontrado pessoalmente com Luciane. E todo o resto não tem nada de fake: a condenação judicial de Luciane; o fato de ela ser esposa de alguém considerado um dos homens mais perigosos do Amazonas; a existência dos encontros; as investigações apontando que sua ONG, o Instituto Liberdade do Amazonas, é um “braço ativista” do CV, sendo inclusive financiado pela facção; e até mesmo o pagamento, por parte do Ministério dos Direitos Humanos, de passagens aéreas para que Luciane pudesse participar de um evento da pasta dias atrás. São tantos dados verdadeiros que surpreende o fato de um espírito censor como Dino ainda não ter tentado reprimir sua divulgação alegando “desordem informacional”, o conceito espúrio inventado pelo TSE em 2022 para censurar um vídeo, e que à ocasião resumimos como “uma série de informações cuja veracidade é incontestável, mas que levam a conclusões indesejadas”.

Da mesma forma, não é segredo para ninguém familiarizado com o modus operandi do crime organizado que há um enorme esforço das facções para se aproximar dos centros do poder. Muito mais seguro que ameaçar ou “comprar” um juiz ou um promotor, por exemplo, é colocar os próprios membros na magistratura e no Ministério Público, um esforço que o PCC está realizando, a julgar por investigações da Polícia Federal. A facilidade com que Luciane transitava em Brasília, ciceroneada por uma ex-deputada do PSol, mostra como o Legislativo também está na mira do crime; e a abertura de ONGs de fachada dá oportunidade para a interlocução também com o Poder Executivo – independentemente de os agentes públicos saberem ou não com quem realmente estão falando.

Esta foi, aliás, a justificativa dos secretários Vaz e Brandani, que afirmaram não ter como saber detalhes da biografia de Luciane – em um dos casos, o Ministério da Justiça alegou que ela fazia parte de uma comitiva, e por isso sua presença não teria sido especificada. Mesmo concedendo aos secretários o benefício da dúvida, estaríamos diante de uma falha inaceitável; primeiro, porque uma pesquisa básica na internet já teria sido suficiente para alertar as autoridades sobre quem era Luciane; segundo, porque é absurdo que um ministério considere suficiente a informação de que a visita será feita por uma comitiva, sem os dados dos seus integrantes. Se uma triagem desleixada como esta já seria suficientemente ruim em qualquer ministério, ela se torna perigosa quando se trata de uma pasta como a da Justiça, que lida justamente com temas como o combate ao crime organizado – tanto é assim que as regras de acesso ao Palácio da Justiça foram alteradas após as reportagens divulgando as visitas de Luciane.

Ainda que não tenha se encontrado diretamente com Luciane, Flávio Dino já atraiu bastante controvérsia por visitar, com pouquíssimo apoio policial, uma favela dominada por traficantes, na qual nem mesmo unidades especializadas da Polícia Militar conseguem entrar. Até por isso o caso das visitas de Luciane exige apuração criteriosa para que saibamos o que realmente aconteceu: se o tráfico simplesmente se aproveitou de protocolos bastante falhos do Ministério da Justiça – o que por si só já é bastante problemático –, ou se estamos diante de uma conivência de setores do governo com o crime organizado.

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