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 | Fernando Donasci
| Foto: Fernando Donasci

Pertence ao cancioneiro da sabedoria popular o dito acerca das dosagens excessivas de remédio que, em vez de curar, acabam por matar o infeliz do paciente. Essa máxima pode ajudar a refletir sobre o caso – que ganhou dimensão nacional – do vídeo publicado no YouTube pelo comediante Danilo Gentili, em resposta a uma notificação extrajudicial enviada pela deputada Maria do Rosário (PT-RS).

Resumindo muito brevemente o conteúdo do vídeo, Gentili recebe e abre um envelope encaminhado por Maria do Rosário e que contém uma notificação extrajudicial assinada por um advogado da Câmara dos Deputados solicitando que o humorista remova três postagens suas feitas no Twitter. Gentili inicia realçando a palavra “deputada” para, enquanto cobre com os dedos a primeira e a última sílaba da palavra, perguntar a si mesmo “quem é Maria do Rosário?” Sim: Gentili inicia a sua manifestação imputando à parlamentar, em linguagem chula, a qualificação do meretrício.

Em seguida, o comediante rasga a notificação extrajudicial em inúmeros pedacinhos, justificando que, ao assim proceder, estaria impossibilitado de lê-la. Gentili fricciona os pedaços de papel em sua genitália e os coloca de volta no mesmo envelope, enviado de volta à deputada com uma advertência no anverso: “com cheirinho especial”. Ao despachar o envelope em uma agência dos Correios, Gentili encerra dizendo que, por pagar o salário da parlamentar, é ele quem pode exigir que os políticos calem a boca, e não o contrário.

A liberdade de expressão precisa ser protegida. Mas isso não se confunde com a apologia da ofensa e da humilhação

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu pela exclusão do vídeo da rede mundial de computadores, clarificando que a notificação extrajudicial promovida pela deputada requeria ao comediante que cessasse a postagem de notícias supostamente falsas a respeito da filha da congressista, ainda menor de idade. Após a decisão, Gentili e diversas outras personalidades passaram a defender o vídeo baseando-se na liberdade de expressão humorística e política, razão pela qual seria inconcebível enxergar qualquer ilicitude no ato.

Daí a reflexão: os limites da liberdade de expressão seriam tão extensos? O caso não apresentaria, ao reverso, uma situação em que o excesso na defesa da liberdade de expressão poderia acabar por aniquilá-la ou, ao menos, menosprezar o que se pretende extrair dessa garantia?

O vídeo postado por Gentili é predominantemente – antes do que uma expressão de arte e de humor – uma crítica e uma resposta a um ato extrajudicial, expostas ao público mediante a ofensa e a humilhação direta a Maria do Rosário. Nem tudo o que um humorista faz pode ser qualificado como um ato humorístico ou um ato de crítica política, mas, ainda que de fato o sejam, não é verdade que toda manifestação de humor, ainda que crítica, seja necessariamente lícita. Entendimento em contrário poderia permitir que em um folhetim de comédia fosse possível inserir, pura e simplesmente, ofensas diretas e expressas contra uma pessoa com o objetivo de se galgar a proteção e o escudo da liberdade de manifestação artística. Em outras palavras, o simples fato de ter origem em alguém que exerce a profissão de fazer os outros rirem não transforma tudo que um humorista faça em algo lícito, correto ou conforme ao Direito.

Nossas convicções:  Liberdade de expressão

Leia também:Tolerância e liberdade de expresão (editorial de 30 de setembro de 2012)

É verdade – e isso precisa ser ressaltado – que pessoas públicas, como parlamentares, precisam arcar com o ônus de uma diminuição das esferas de proteção dos direitos da personalidade (honra, imagem, nome) em favor da ampla liberdade de expressão. Isso não significa, todavia, um salvo-conduto para a ofensa e a humilhação, direta e pessoal. A esfera de proteção dos direitos da personalidade de um político é reduzida, mas jamais suprimida completamente. E, no caso, a ofensa foi direta à condição feminina da parlamentar, evidentemente humilhada em público por ter encaminhado notificação extrajudicial ao comediante.

Ainda que a notificação da deputada tenha endereçado pedido nada razoável (como o de apagar tweets com críticas à parlamentar), há meios e modos para se defender das investidas contra a liberdade de expressão, inclusive com o humor mesmo, que pode ir do naïve, passando pela ironia e chegando ao sarcasmo, mas sem se permitir o insulto puro e simples. A tradição da nossa jurisprudência vai nesse sentido.

Humoristas têm uma importância singular para o país. Em tempos de tantas notícias ruins no Brasil, por vezes é na arte, e na arte humorística, que se encontra o conforto para a alma. Isso não é pouco importante. A liberdade de expressão, garantida constitucionalmente, precisa ser protegida. Mas isso não se confunde com a apologia da ofensa e da humilhação encorajadas por uma visão equivocada – claro que, muitas vezes, muito bem intencionada – e absolutista da liberdade de expressão.

Apesar de a liberdade de expressão no Brasil adoecer com frequência, não se pode permitir que o excesso de remédios faça com que ela pereça ainda mais. Não se pode permitir que o doente venha a fenecer por excesso de fármacos.

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