O pesquisador Joelson de Souza, do Observatório das Favelas, disse tempos atrás que um dos problemas da imprensa (e das instituições em geral) é considerar que todos os espaços de sub-habitação são iguais. É como se toda e qualquer zona favelizada recebesse, de antemão, um rolo compressor: seriam, a rigor, pobres, violentas, informais, desorganizadas. Por tabela, deduz-se que teriam pouco a ensinar. Não faltam vozes contrárias a essa tese preguiçosa. Tempos atrás, o arquiteto e urbanista italiano Bernardo Secchi provocou os brasileiros a investigar o que as favelas e afins têm a ensinar. Tinha motivos. Em suas visitas ao país, encontrou mais de um exemplo de comunidades que desenvolveram soluções para o lixo, para a segurança, para a educação. Esses saberes, atestava, poderiam servir de subsídio para projetos públicos em outras localidades, inclusive as bem nascidas.

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Tome-se Curitiba como exemplo. Entre as mais de 250 ocupações irregulares da capital existem áreas históricas, como a Vila das Torres e o Parolin. Outras nasceram de movimentos organizados em prol da moradia, como parte do Bolsão Audi-União. Ali, as ruas e os terrenos são medidos. Há também microfavelas, a exemplo da Sociedade Barracão, no Uberaba. As tipologias podem chegar a uma dezena. Interferem na natureza de cada local as condições do território (beira de rio? Beira de linha?); a natureza da área ocupada (pública ou privada?); o momento em que surgiram (na ditadura ou na abertura?). Tanto quanto é determinante a forma de organização comunitária desenvolvida. Nunca são iguais, daí não poderem ser achatadas por reducionismos. As três vilas de Curitiba que a Cohab regulariza desde março deste ano estão aí para comprovar. Bernardo Secchi adoraria conhecê-las.

A prática do mutirão, de qualquer natureza, é remédio contra o individualismo, cujos malefícios não escolhem quantidade de diplomas nem zeros no salário

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São elas as vizinhas 23 de Agosto, no Ganchinho, e Campo Cerrado, no Sítio Cercado; e Xapinhal, também no Sítio Cercado. Juntas, somam 20% do que o município tem engatilhado para regularizar. Nelas, mora um total de 2.905 famílias, algo como 12 mil pessoas. Boa parte dessa gente espera pela regularização fundiária há quase 25 anos. Com um detalhe: uma parcela significativa dos ocupantes não esperou de braços cruzados. As pequeninas Campo Cerrado e 23 de Agosto – e o imenso Xapinhal – tiveram, sim, um passado de favela. Mas, mesmo com tudo contra, as três ganharam, em pouco mais de duas décadas, o aspecto de bairro de periferia. Mérito delas – em vez de esperar o cartório chegar com a papelada para começar a história, começaram a história sem papel mesmo. Proatividade de causar rubores na turma da burocracia.

É da humanidade, em condições desfavoráveis, desenvolver saídas criativas. No caso das três vilas, um dos acertos está no bom urbanismo, praticado não raro sob pressão. É o caso da abertura de ruas, evitando que as comunidades ficassem isoladas, à mercê do tráfico e das milícias. Por mais óbvio que pareça, muitas zonas condenadas à violência o foram por causa da demora dos gestores públicos em fazer as ligações urbanas. Um pecado. A Colômbia, um dos países mais violentos do mundo, provou que ciclovias, teleféricos e arruamento oxigenam a vida nos guetos, fazendo com que a população favelizada se sinta de fato moradora da cidade. O resto vem a galope. A regra é não desperdiçar a lição.

Outro fator diz respeito à capacidade da população em formar grupos de discussão. Costuma ser fator negligenciado, tamanha nossa tradição autoritária, mas onde houver pessoas em conversa, fazendo pactos, com capacidade de refletir, a realidade tende a deixar de ser vista com ares fatalistas, antes, um desafio à organização política. Mais: a organização comunitária tende a suprir, em parte, as deficiências da escola. Sabe-se que uma das marcas das zonas favelizadas é a escolaridade baixa, o que perpetua nesses locais a concentração de moradores com aderência difícil ao mercado de trabalho. É um efeito dominó. Embora não promovam o saber formal, as organizações comunitárias devolvem a voz aos participantes e o provocam a colocar o interesse público acima do privado. Em vez do buraco na porta de casa, o arruamento da vila, a praça para o bairro.

Nem Campo Cerrado, nem 23 de Agosto nem Xapinhal são o sétimo céu. Mas servem de exemplo para mostrar que saberes compartilhados podem não só mudar destinos pessoais – modificam também destinos urbanos. E que não se pense tratar de assembleísmo e palanque. O associativismo pode ser para aprender artesanato, para práticas pastorais – como as que promovem saúde pública – ou para pequenos lazeres. A prática do mutirão, de qualquer natureza, é remédio contra o individualismo, cujos malefícios não escolhem quantidade de diplomas nem zeros no salário. A turma do Cerro, do 23 e do Xapinhal mandou avisar que, se tem segredo, o segredo só pode ser esse.

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