Quando as esperanças de uma distensão entre Executivo e Judiciário pareciam cada vez mais distantes, depois das declarações incendiárias de Jair Bolsonaro nos atos de 7 de setembro e de novas decisões de prisão e quebras de sigilo ordenadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, o presidente da República dá um primeiro passo em direção a uma extremamente necessária normalização institucional. Em declaração divulgada no fim da tarde de quinta-feira, Bolsonaro afirmou que há, sim, divergências com Moraes a respeito de decisões tomadas em inquéritos que correm no STF, mas acrescentou: “Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos poderes (...) minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum”.
Dentre as distintas reações que o texto despertou, duas chamam especialmente a atenção. A primeira é a de apoiadores do presidente da República que manifestaram seu desapontamento com a nota. Queriam a continuação do Bolsonaro radicalizador, que mantivesse o clima de tensão e ameaças permanentes até triunfar definitivamente sobre Moraes, de que maneira fosse – com o uso da força, se necessário. São aqueles que, acertadamente, percebem o ataque às liberdades democráticas promovido recentemente pelo Judiciário; mas que ou defendem claramente o caminho da ruptura, e até mesmo do golpe, ou se negam a perceber o quanto o tom bélico de Bolsonaro, a promessa de não cumprimento de decisões judiciais, os “ultimatos”, as insinuações sobre o processo eleitoral de 2022 também colocavam em xeque a democracia brasileira.
Um país que enfrenta uma pandemia, inflação e desemprego não tem condições de ser tragado por uma guerra aberta entre Executivo e Judiciário. Alguém precisava dar o primeiro passo, e ele foi dado
A segunda reação é a zombaria – não tanto aquela que se tornou característica do brasileiro, capaz de fazer piada sobre tudo, mas a que revela uma incapacidade crônica de enxergar a atitude positiva de tomar a iniciativa de encerrar uma crise institucional, apenas por ter vindo de Bolsonaro; são as mesmas pessoas que estariam louvando a magnanimidade de Moraes caso a mão estendida fosse a do ministro do Supremo, e não a do presidente da República. Para estes, importa mais uma desmoralização, ou humilhação de Bolsonaro que as eventuais consequências benéficas para o país de uma distensão ou mesmo de um entendimento entre os poderes. A narrativa é mais importante que o bem comum.
Independentemente das circunstâncias que levaram Bolsonaro a redigir a nota – se por reconhecer o erro da postura anterior ou se por perceber que ela poderia lhe trazer grandes problemas políticos ou jurídicos – e da importância que tiveram o ministro Ciro Nogueira, o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o ex-presidente Michel Temer (foi dele a indicação de Moraes ao STF) no papel de bombeiros, é certo que o país necessita ver as divergências entre poderes tratadas de maneira civilizada. Um país que enfrenta uma pandemia, inflação e desemprego não tem condições de ser tragado por uma guerra aberta entre Executivo e Judiciário. Alguém precisava dar o primeiro passo, e ele foi dado – mas isso não basta, e há trabalho a fazer de ambos os lados.
A pacificação não estará completa se o Supremo não fizer a sua parte – o que não será fácil, a julgar pelo caminho que a corte vem trilhando nos últimos tempos. Em primeiro lugar, é preciso que haja um reconhecimento necessário: o de que os ministros, mesmo na hipótese de estarem sinceramente convictos de que estão agindo dentro das “quatro linhas” no combate a fake news e discursos de ódio, na verdade já vêm cometendo abusos há tempos. Essa constatação tem sido dificultada pelo apoio de muitos formadores de opinião a tais medidas. Faz falta – aos ministros, mas também a boa parte da sociedade – ouvir as inúmeras vozes que já se levantaram e apontaram as irregularidades, as arbitrariedades e as agressões à liberdade de expressão.
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- O pedido de impeachment de Alexandre de Moraes e o papel do STF na crise institucional (editorial de 21 de agosto de 2021)
Este reconhecimento permitiria, enfim, o encerramento das perseguições, dos inquéritos abusivos, das prisões, desmonetizações, quebras de sigilo sem fundamento concreto. Onde houver indícios concretos de crime – injúria, calúnia, difamação, ameaça etc. –, que a investigação continue, mas na instância adequada; de resto, que se restaure a liberdade de cada cidadão para fazer sua crítica, por mais incisiva que seja, ou para defender posições no debate científico sobre determinados temas sobre os quais o Supremo levantou um tabu. Este já seria um bom começo para que se corrijam as deficiências do atual STF; há outras, como a tendência a se intrometer nas funções do Executivo e do Legislativo, ou a leniência com os corruptos, mas para a distensão necessária no momento atual bastará, no momento, a restauração plena da liberdade de expressão no país.
Na resposta ao movimento de Bolsonaro, está nas mãos do Supremo mostrar se quer continuar a reprimir o país (ainda que julgando fazer a coisa certa) ou se quer os poderes “trabalhando juntos em favor do povo e todos respeitando a Constituição”, como afirmou o presidente da República. Não há dúvidas de que a segunda opção é a melhor para o país, mas, e se essa resposta for negativa? E se o Supremo não recuar em suas investidas contra as liberdades? Mesmo neste caso, nada justificará que Bolsonaro retorne ao discurso antigo, de confronto, desobediência e ruptura; o caminho correto é o da nota de 9 de setembro, não o das falas de dois dias antes. As divergências entre os dois poderes não desaparecerão, mas precisarão ser resolvidas sempre dentro do marco legal, usando os instrumentos previstos na lei, mesmo que isso exija percorrer um caminho longo e árduo, com derrotas temporárias até que se restaure plenamente o respeito à liberdade. É no cumprimento diligente de seus papéis que os membros dos três poderes trarão de volta o equilíbrio necessário para o fortalecimento da democracia.