A morte do repórter cinematográfico Santiago Andrade, da Band, atingido por um rojão lançado por um black bloc durante protesto no Rio de Janeiro na quinta-feira passada, causou uma onda nacional de comoção. Quando um artefato como esse, cujo poder letal é conhecido, é disparado diretamente contra outras pessoas, estamos diante de um crime não importa se a vítima é jornalista, policial ou manifestante. Os assassinos precisam ser responsabilizados pelo que fizeram, mas o episódio também pede um exame de consciência daqueles que, desde o início das grandes manifestações de rua, criaram o cenário que permitiu aos black blocs acreditarem que podiam fazer o que bem entendessem.
Os black blocs não chegaram aonde chegaram por acaso. Contaram com o apoio, implícito ou explícito, de muita gente. Famosos e anônimos, mais ou menos influentes, muitas vezes contaminados por ideologias que veem legitimidade na violência quando usada para os fins que lhes apetecem. Repetem, assim, os tristes exemplos do historiador Eric Hobsbawm, para quem as dezenas de milhões de mortes provocadas por Stalin seriam justificáveis se servissem para concretizar a utopia comunista; e do arquiteto Oscar Niemeyer, que pensava da mesma forma. Hobsbawm e Niemeyer não viveram para ver os black blocs em ação no Brasil, mas, a julgar por suas ideias, talvez até endossassem a ação dos mascarados.
Em editorial de outubro do ano passado, a Gazeta do Povo manifestou sua preocupação com a construção, nas universidades brasileiras, de um arcabouço teórico que justificava a depredação black bloc, inspirado nos "autonomistas" italianos que providenciaram uma base intelectual para os terroristas que agiam naquele país, nos anos 70. Professores de universidades renomadas, como a USP e a FGV, escreveram em defesa dos mascarados meses atrás, provavelmente inspirados por autores como Slavoj Zizek, um dos principais intelectuais de esquerda da atualidade e defensor enfático da "violência revolucionária" como uma necessidade. Na mesma ocasião, lembramos que os professores da rede pública do Rio de Janeiro adotaram os black blocs como parceiros durante a greve da categoria, como direito a refrões como "uh, é black profes!"
Em um apoio menos teórico, mas mais midiático e instantâneo, alguns artistas manifestaram solidariedade adotando a estética black bloc, deixando-se fotografar imitando os vândalos mascarados. Foi assim com o rapper Marcelo D2 explícito em seu apoio aos black blocs e com o cantor e compositor Caetano Veloso, que, surpreso com a maneira como a imagem se espalhou pelas mídias sociais, contou a história da foto em um artigo no jornal O Globo. Caetano, para quem "proibir máscaras numa cidade como o Rio é violência simbólica", disse que não fez a foto para ser divulgada e que nem era "anticapitalista convicto", mas emendou: "Entendo que black bloc faz parte".
Também é preciso lembrar a ação não menos eficaz de alguns setores da imprensa que se empenharam em demonizar a polícia até que, como lembrou a Gazeta recentemente, ela fosse sempre considerada "suspeita até prova em contrário". Com isso, aqueles que tinham a possibilidade de frear os black blocs acabaram neutralizados, receosos da repercussão negativa que teriam caso apenas fizessem seu trabalho. Logo após Andrade ter sido ferido, um repórter afirmou que o rojão que atingiu o cinegrafista tinha partido da polícia. Depois, por muito tempo insistiu-se na narrativa segundo a qual "não se sabia de onde tinha partido o artefato" mesmo depois de ficar claro que a polícia não trabalhava com bombas que produzissem o efeito registrado nas imagens da agressão. É como se alguns jornalistas alimentassem um desejo secreto de que, no último instante, surgisse uma prova de que não tivessem sido os black blocs (tratados com condescendência em muitas reportagens, aliás) os responsáveis pelo ataque ao repórter cinematográfico.
Nesse sentido, não pode ser ignorado o teor da nota que o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro emitiu no dia seguinte ao ataque. A julgar pelo texto divulgado, responsabilizar a emissora onde Andrade trabalhava por não ter lhe fornecido equipamentos de proteção parecia mais importante para a entidade que descobrir quem tinha sido o autor do ataque.
Os black blocs não se tornaram criminosos só agora que acrescentaram um homicídio à sua folha corrida; eles já eram bandidos muito antes disso. Se alguns repensarem seu endosso aos black blocs por causa da morte de Santiago Andrade, que aproveitem essa ocasião para se perguntar por que tiveram de esperar até que houvesse uma morte para tal. A essa altura, insistir em apoiar os vândalos (e agora também assassinos) mascarados mesmo depois desse episódio que entristece o Brasil significa assumir a cumplicidade com a barbárie.
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