Em agosto de 2018, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu retirar do juiz Sergio Moro, então o responsável pelo julgamento das ações da Operação Lava Jato em primeira instância, trechos de depoimentos de executivos da Odebrecht que se referiam ao ex-presidente Lula. Na mesma sessão, também foram remetidos à Justiça Federal em Brasília trechos das mesmas delações que tratavam do ex-ministro Guido Mantega. E, por fim, outras partes de depoimentos foram remetidas ao Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal. Em todos os casos, alegava-se que não havia conexão nenhuma com a Petrobras, e as decisões foram tomadas contrariando o relator, ministro Edson Fachin, e o parecer da Procuradoria-Geral da República. A maioria foi formada por Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Celso de Mello não estava presente.
A decisão deixou indignada a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Um de seus integrantes, o procurador Deltan Dallagnol, deu entrevista à rádio CBN no dia seguinte, afirmando que “os três de sempre do Supremo Tribunal Federal” retiram o que podem das mãos de Moro e “dão sempre os habeas corpus”. Lewandowski, Toffoli e Mendes “estão sempre se tornando uma panelinha”, acrescentou. Os ministros, segundo o procurador, “querem mandar para a Justiça Eleitoral como se não tivesse indicativo de crime. Isso para mim [Dallagnol] é descabido”. As decisões, portanto, estariam enviando uma “mensagem de leniência em favor da corrupção”.
Dallagnol fez uma ressalva importante: “não estou dizendo que estão mal-intencionados, estou dizendo que objetivamente mandam uma mensagem de leniência”. Ela, no entanto, não foi suficiente para Toffoli, que acionou o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Em 17 de agosto, o órgão iniciou uma apuração que se transformou em Processo Administrativo Disciplinar (PAD), cujo julgamento está na pauta da reunião do CNMP desta terça-feira. Segundo o corregedor Orlando Moreira, Dallagnol atacou e ofendeu “ministros mais alta Corte”, “comprometeu a imagem institucional do Ministério Público” e gerou “desconfiança no Poder Judiciário”, extrapolando sua liberdade de expressão. O corregedor pede que seja aplicada a Dallagnol a pena de censura, e é isso que os conselheiros serão chamados a decidir.
A liberdade de expressão geral do membro do MP é garantida e, quando ele se pronuncia sobre os processos em que é parte, acrescenta-se ainda a inviolabilidade
São três as perguntas que devem orientar o CNMP quando for avaliar o caso de Dallagnol. Um membro do Ministério Público pode ou não fazer críticas ao Judiciário? Se pode, quais são os limites para essas críticas? E, em sua manifestação, Dallagnol ultrapassou esses limites?
A primeira pergunta traz à tona o tema da liberdade de expressão, um direito fundamental, protegido constitucionalmente e que, na ausência de qualquer vedação ou restrição aplicada especificamente a membros do MP, vigora com toda a sua plenitude. Mas a Lei Orgânica do Ministério Público vai além quando, em seu artigo 41, lista entre as prerrogativas dos membros do MP, no exercício de sua função, a “inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional”.
Em outras palavras: a liberdade de expressão geral do membro do MP é garantida e, quando ele se pronuncia sobre os processos em que é parte – o que é o caso da entrevista de Dallagnol –, acrescenta-se ainda a inviolabilidade, significando que mesmo certas manifestações que, em outras circunstâncias, poderiam ser consideradas um ilícito não o são neste caso. Trata-se de uma ampliação da liberdade; é algo semelhante ao que ocorre, por exemplo, com deputados federais e senadores, que são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, segundo o artigo 53 da Constituição. A inviolabilidade dos membros do MP – ainda que sem a mesma amplitude daquela de que gozam os parlamentares (cuja imunidade, lembramos, é de natureza constitucional) – é necessária, pois é natural que o integrante do Ministério Público, como parte nos processos, tenha todo o direito de se manifestar publicamente sobre tais processos e as decisões judiciais neles tomadas. E o relatório do corregedor Moreira não nega este ponto fundamental.
A crítica, no entanto, não pode ser feita de qualquer forma. Essa liberdade sofre uma modulação no artigo 43, que lista os deveres dos membros do MP, entre os quais o de “zelar pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções”. Este trecho foi, inclusive, mencionado por Orlando Moreira como tendo sido desrespeitado por Dallagnol em sua entrevista de agosto. Mas esse entendimento implica uma visão muito restritiva da liberdade de expressão garantida aos membros do MP, pois dá a entender que as críticas a uma decisão judicial, ou mesmo a um conjunto delas, seriam um ataque pessoal aos ministros ou uma desmoralização da instituição judicial.
Decisões judiciais são, sim, passíveis de questionamentos da parte de qualquer cidadão, incluindo autoridades como procuradores da República. A crítica, quando formulada de maneira objetiva, serve inclusive como ferramenta de fortalecimento da instituição responsável pela decisão criticada. Se não fosse assim, ao membro do MP só estariam permitidos os elogios, o que, convenhamos, nem exige liberdade de expressão, que existe para proteger justamente manifestações como a de Dallagnol. Aliás, é bom registrar que os próprios ministros do STF se dirigem uns aos outros, às vezes, em termos que, estes sim, extrapolam totalmente qualquer regra de boa convivência, quanto mais de decoro institucional – lembremo-nos, por exemplo, das discussões entre Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, descrito pelo colega como “uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”. Mesmo essas manifestações também são protegidas pelos mesmos mecanismos que garantem o direito à expressão por parte de Dallagnol.
Dallagnol teria seu direito garantido ainda que sua crítica fosse infundada, o que nem é o caso
Na entrevista, Dallagnol deixa muito claro que contesta a decisão propriamente dita, bem como outras dos mesmos três ministros, sem tecer nenhum comentário sobre o caráter dos que a proferiram. O procurador não deixa de reconhecer a legitimidade do STF para decidir o que decidiu, nem manifesta a intenção de desobedecer a decisão. Não há como ver um desprestígio ao Poder Judiciário, nem “comprometimento da imagem institucional” do MP.
E é importante ressaltar que Dallagnol tem seu direito garantido, com base na inviolabilidade que lhe é concedida pela Lei Orgânica do MP, ainda que sua crítica fosse infundada, o que nem é o caso aqui. Afinal, Mendes e Toffoli, em especial, não têm sido pródigos em conceder habeas corpus, dentro e fora da Lava Jato? Em junho deste ano, Toffoli já havia sacado da cartola um habeas corpus “de ofício” (por iniciativa própria) a José Dirceu. O que os votos de Mendes, Toffoli e Lewandowski têm em comum é sempre a tendência favorável aos réus, sob uma compreensão chamada “garantista” do processo penal, mesmo quando há suficientes evidências da existência dos crimes de corrupção. Daí a referência à “mensagem de leniência em favor da corrupção” feita por Dallagnol, plenamente justificada, especialmente no caso de remessas de delações à Justiça Eleitoral, que só pode julgar os crimes de caixa dois, ignorando totalmente o contexto de corrupção que deu origem ao dinheiro usado ilegalmente nas campanhas, um crime que ficaria impune.
Portanto, o que temos aqui é uma crítica objetiva a uma decisão do STF em um caso no qual a força-tarefa da Lava Jato atua como parte, crítica esta protegida pela Constituição e pela Lei Orgânica do Ministério Público. Considerar Dallagnol culpado de infração disciplinar neste caso, aplicando-lhe uma pena que tem uma série de consequências sobre sua carreira, é um desserviço ao próprio Ministério Público e ao bem comum. Uma punição neste caso prejudica o MP porque, com este perigoso precedente aberto, os demais procuradores acabarão se autopoliciando para evitar processos semelhantes; e prejudica a sociedade, porque a voz do Ministério Público tem sido a sua defesa contra a corrupção. Precisamos que ela continue a ressoar, forte e independente.