Durante alguns dos julgamentos de casos da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes, o mais exaltado dos adversários da operação na corte, repetiu inúmeras vezes uma menção sarcástica a um certo “Código Penal soviético” – era uma tentativa de atingir o ex-juiz Sergio Moro, que nas supostas conversas entre procuradores da força-tarefa teria o apelido de “Russo”. Com a ironia, Mendes insinuava que Moro teria agido à margem da lei, fazendo as próprias regras para julgar e condenar os corruptos do petrolão. No entanto, cada vez mais fica claro que a prática de subordinar a lei aos desejos do julgador, como era a praxe dos processos teatrais da União Soviética que buscavam ostracizar os adversários do regime, é cortesia não de Moro, mas dos ministros de tribunais superiores.
Afinal, em um país onde os magistrados das principais cortes do país seguem à risca a lei e a jurisprudência, Deltan Dallagnol jamais teria sido condenado a indenizar Lula pela apresentação de PowerPoint exibida por ocasião da denúncia formal contra o ex-presidente no caso do tríplex do Guarujá, em 2016. Havia inúmeros motivos processuais e de mérito para que o pedido de indenização feito pelo petista não fosse aceito. O caso do PowerPoint já tinha sido analisado pela Corregedoria do Ministério Público Federal e pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público, que não viram problema algum na apresentação; o CNMP também decidira arquivar a representação contra Dallagnol e seus colegas de força-tarefa Roberson Pozzobon e Januário Paludo. Ora, diz o princípio do non bis in idem que ninguém pode responder mais de uma vez pelo mesmo ato – quanto mais quatro vezes. Além disso, a defesa de Lula processou Dallagnol diretamente, quando na verdade a ré deveria ser a União, já que o então procurador agia na qualidade de membro do MPF; toda a jurisprudência do STF aponta nesta direção. Por fim, ainda que a entrevista coletiva na qual se deu a exibição dos slides tenha ocorrido em Curitiba, Lula preferiu iniciar a ação na Justiça estadual paulista.
Em um país onde os magistrados das principais cortes do país seguem à risca a lei e a jurisprudência, Deltan Dallagnol jamais teria sido condenado a indenizar Lula
E, nas duas primeiras instâncias, os magistrados que analisaram o caso foram certeiros ao negar a indenização. O juiz Carlo Melfi, da 5.ª Vara Cível de São Bernardo do Campo (SP), e os desembargadores da 8.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo tiveram o mesmo entendimento: a apresentação simplesmente refletia o conteúdo da peça de denúncia entregue pelo MPF ao Judiciário; o acórdão da decisão de segunda instância diz explicitamente haver “inexistência de abuso nas expressões utilizadas na referida divulgação” – que, aliás, se justificava dada a notoriedade do denunciado. Ainda que a estratégia de comunicação da força-tarefa tivesse um certo grau de ineditismo a ponto de provocar discordância em alguns círculos, em momento algum ela violou os direitos ou a honra dos acusados, seja Lula, sejam todos os outros alvos da Lava Jato, já que as entrevistas coletivas eram um hábito da operação, não se resumindo à denúncia contra o ex-presidente.
Pois a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça ignorou todos esses fatores para condenar Dallagnol a indenizar Lula em R$ 75 mil – a pretensão do petista era tirar R$ 1 milhão do ex-procurador. O preconceito contra a Lava Jato ficou claro em expressões como “juízo de exceção” e “funcionamento anômalo”, usadas por Raul Araújo, um dos quatro ministros que votaram pela condenação. Dallagnol, então, recorreu ao Supremo Tribunal Federal para reverter a sentença, e o ministro Ricardo Lewandowski se tornou o responsável pelo mais recente absurdo judicial cometido contra a Lava Jato ao permitir que a defesa de Lula use no processo as supostas conversas de Dallagnol com outros membros da força-tarefa e com Moro, fruto de uma invasão dos celulares das autoridades.
Tais conversas já seriam imprestáveis como prova judicial pelo simples fato de jamais terem tido sua autenticidade comprovada, mesmo após perícia da Polícia Federal. Mas, ainda que fossem indubitavelmente verdadeiras, seu uso ainda estaria proibido pelo fato de terem sido fruto de um crime, pois a Constituição Federal é claríssima ao afirmar, no inciso LVI do artigo 5.º, que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Embora haja jurisprudência que aceita tais evidências quando elas servem para inocentar um réu, obviamente não é esta a situação em tela, já que a defesa de Lula quer usar as supostas conversas contra Dallagnol, não a seu favor. Não existe nenhuma argumentação jurídica possível para defender a decisão de Lewandowski.
Cada vez mais, fica cristalino que, quando se trata de prejudicar a Operação Lava Jato e seus protagonistas, e demolir os resultados conquistados por anos de trabalho incansável e heroico, vale absolutamente tudo: ignora-se a Constituição, os códigos processuais, os bons princípios jurídicos, decisões anteriores das mesmas cortes superiores, a verdade dos fatos. Já estamos um passo além do “garantismo” que, entre duas interpretações possíveis da lei, escolhe sempre aquela que acaba favorecendo os corruptos; agora, trata-se de negar a própria letra da lei e dos códigos, protegendo uma elite de intocáveis, colocados longe do alcance dos agentes da lei. Poucas coisas podem ser mais soviéticas que isso.