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Editorial

Deltan Dallagnol, o STF e a liberdade de crítica

Deltan Dallagnol
Procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol irá respondente a processo em Conselho do MP. Foto: Antonio More / Gazeta do Povo (Foto: )

Na última terça-feira (23), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) abriu um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o procurador Deltan Dallagnol, chefe da Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba. O pedido do PAD veio do corregedor nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel, depois de receber um ofício do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli. O que motivou essa cadeia de decisões foi o trecho de uma entrevista que Dallagnol concedeu à rádio CBN em agosto do ano passado, em que o procurador critica a decisão da 2ª Turma do STF que tirou de Curitiba depoimentos de um acordo de colaboração da Odebrecht sobre ex-presidente Lula e o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e os enviou para a Justiça Federal e para a Justiça Eleitoral do Distrito Federal.

O caso é mais um que revela o tênue, mas fundamental, limiar entre a liberdade de crítica e a proteção da honra – uma linha que, no caso em questão, foi mal compreendida pelo CNMP. O trecho específico da fala de Dallagnol que motivou o PAD foi o seguinte: “Os três mesmos de sempre do Supremo Tribunal Federal que tiram tudo de Curitiba e mandam tudo para a Justiça Eleitoral e que dão sempre os habeas corpus, que estão sempre se tornando uma panelinha assim... que mandam uma mensagem muito forte de leniência a favor da corrupção”. Os três em questão são os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que ainda não era o presidente da corte. No entanto, logo em seguida, Dallagnol afirma: “objetivamente, não estou dizendo que estão mal-intencionados, estou dizendo que objetivamente mandam uma mensagem de leniência. Esses três de novo olham e querem mandar para a Justiça Eleitoral como se não tivesse indicativo de crime. Isso para mim é descabido”.

Não parece razoável, no entanto, interpretar esses dispositivos de modo a restringir a liberdade de crítica.

É verdade que o PAD foi aberto com base em dispositivos específicos da Lei Orgânica do Ministério Público da União, mas uma breve rememoração da regra geral nesses casos serve para elucidar o que está em jogo. Já tivemos a oportunidade de lembrar neste espaço, diversas vezes, que a liberdade de expressão não é absoluta em nenhum país do mundo, nem sequer nos Estados Unidos. No Brasil e nos países europeus, onde o equacionamento entre a proteção à honra e a liberdade de expressão é mais equilibrado, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram critérios para balizar essa ponderação na aplicação da lei. Como regra geral, a liberdade de crítica é mais ampla em temas de interesse público, e a proteção da honra de figuras públicas é mais restrita – embora nunca seja anulada totalmente.

Não há dúvidas de que essas duas hipóteses estão presentes: tanto o tema discutido é de importância cabal, quanto os ministros são agentes públicos. Além disso, é preciso reconhecer que toda crítica embute algum traço de severidade, ainda mais em temas candentes do debate público. No caso particular, não é possível reconhecer na linguagem utilizada pelo procurador nenhum elemento que torne a crítica abusiva – ainda mais tendo em vista que Dallagnol diz, explicitamente, não querer imputar má-fé aos ministros, mas estar preocupado com mensagem que as decisões dos três, que notoriamente votam juntos em diversas questões, mandam para a opinião pública. Parece claro que o que move o procurador é muito mais o interesse de contribuir para o debate público – o trecho em questão toma alguns segundos de uma entrevista de 15 minutos –, do que de difamar membros do STF. Dallagnol, na prática, faz aquilo que o direito alemão chama de “crítica objetiva”, isto é, quando se atacam os atos, e não as pessoas; no caso, atacando-se o teor da decisão.

Nossas convicções: Liberdade de Expressão

Pois bem: a maioria dos membros do CNMP viu indícios, na conduta de Dallagnol, de desrespeito a dois dispositivos da Lei Complementar 75/1993, que dizem que o membro do MP “deve observar as normas que regem o seu exercício e especialmente: [...] tratar com urbanidade as pessoas com as quais se relacione em razão do serviço e [...] guardar decoro pessoal”. Entende-se o espírito da lei: pela dignidade do cargo que ocupa, seria mais condenável um promotor ou procurador, por exemplo, injuriar colegas de serviço por razões privadas ou tomar reiteradas multas de trânsito. Nesses casos, faz sentido imaginar que o agente público possa sofrer uma reprimenda, em âmbito administrativo, que ao cidadão privado não seria possível imputar em sede criminal ou mesmo cível. Não parece razoável, no entanto, interpretar esses dispositivos de modo a restringir a liberdade de crítica – a mais ampla manifestação da liberdade de expressão nas democracias –, ainda mais tendo em conta que se trata de tema de interesse público envolvendo agentes públicos.

Não se ignora que há um debate legítimo sobre a oportunidade de promotores, procuradores e juízes se manifestarem com severidade na imprensa e usando perfis de redes sociais. Há boas razões do lado de quem pensa que esse tipo de crítica deveria vir por canais institucionais e que os agentes da Justiça deveriam guardar mais moderação em manifestações públicas. Esse é outro debate – um debate em que, aliás, Dallagnol se filia à corrente que defende que esses agentes devem ter o direito de se manifestar duramente, o que o procurador tem feito ao longo da Lava Jato, sempre com a genuína intenção de contribuir nos temas de interesse público. De qualquer forma, não há dúvidas de que, individualmente, Dallagnol se manifestou dentro dos parâmetros que a Constituição e as leis lhe garantem. Aberto o PAD, espera-se que seja arquivado – como já fez, aliás, o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) na discussão do mesmo caso.

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