O evento realizado no Congresso Nacional para marcar o primeiro aniversário dos atos de 8 de janeiro de 2023, com a participação dos chefes dos três poderes da República, pouco mais de uma dezena de governadores amigos, parlamentares aliados e outras autoridades, cumpriu à risca o roteiro esperado e que levou os políticos de oposição a ignorar a cerimônia, intitulada “Democracia inabalada”. Foi um espetáculo de autopromoção do governo Lula, de demonização de todos aqueles que ousam ter uma posição político-ideológica divergente – tenham ou não qualquer relação com a invasão dos edifícios da Praça dos Três Poderes – e de defesa de plataformas que estão bastante distantes daquilo que a democracia real significa.
Quando os discursos trataram da punição aos manifestantes presos em flagrante na praça, ainda no dia 8, ou no acampamento diante do quartel-general do Exército, no dia 9, as falas se pareceram mais com a exortação de comandantes que pedem a suas tropas que não tenham misericórdia do inimigo que com o necessário repúdio à invasão combinado com a defesa dos direitos dos réus. As referências a “terrorismo” e “terroristas” estiveram presentes nas falas do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e de Lula, que ainda falou em “punição exemplar” dos manifestantes, mote que foi bastante repetido e que atingiu seu ponto máximo na fala da governadora Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte, que se referiu às prisões e condenações como “ato pedagógico”.
A verdadeira democracia não se resume a eleições limpas e a um “ambiente livre de golpe”. Ela pressupõe respeito às liberdades e garantias democráticas, proteção firme da liberdade de expressão, respeito ao devido processo legal e à ampla defesa
No entanto, se o tratamento judicial do 8 de janeiro é exemplo de algo, não é de democracia, mas de arbítrio. A esquerda que defende o garantismo penal e pede “desencarceramento” quando se trata de bandidos reais fechou os olhos ao fim do princípio do juiz natural, à abolição do direito à ampla defesa e à eliminação da necessidade de individualização da conduta, e aplaudiu as prisões preventivas mantidas sem motivo algum, as condenações sem provas que ligassem os réus aos delitos de que eram acusados. Nada disso é característico de uma democracia digna do nome; no máximo, ela existe nas “democracias relativas” dos carniceiros latino-americanos que Lula tanto adora, e que qualquer pessoa de bom senso não hesita em chamar do que são: ditaduras cruéis.
Outra vítima dos discursos no Congresso Nacional foi a liberdade de expressão. Previsivelmente, os maiores defensores do cabresto amplo, geral e irrestrito foram Lula – cujo velho discurso de “regulamentação da mídia” agora saltou para as mídias sociais – e o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral que, nos últimos tempos, foi o responsável direto por uma série de decisões que trouxeram de volta o fantasma da censura, inclusive a censura prévia. Brasileiros foram privados de seus perfis sem terem cometido crime algum; conteúdos foram impedidos de estrear em plataformas de vídeo e outros foram forçados a sair do ar ainda que não tivessem informação falsa, graças ao conceito de “desordem informacional”, inventado no calor do momento para justificar a remoção.
Nada disso, no entanto, foi alvo de crítica, pelo contrário: o “novo populismo digital extremista” foi classificado por Moraes como “um dos grandes perigos modernos da democracia”, exigindo uma “neutralização”, e Lula afirmou que “nossa democracia estará sob constante ameaça enquanto não formos firmes na regulação das redes sociais”. Em outras palavras, nessa visão peculiar de “democracia” é preciso controlar quem pode falar e o que pode ser dito, como aliás já vem sendo feito graças aos tribunais superiores, que se atribuíram superpoderes inconstitucionais e já dispensam até a necessidade de serem provocados, podendo agir por conta própria para ordenar a remoção de conteúdos que considerar inconvenientes.
Nada disso é democracia digna do nome. A verdadeira democracia não se resume a eleições limpas e a um “ambiente livre de golpe”. Ela pressupõe respeito às liberdades e garantias democráticas, proteção firme da liberdade de expressão, respeito ao devido processo legal e à ampla defesa, tribunais que façam justiça e não justiçamento, mas nada disso existiu antes, durante e depois do processo eleitoral, muito menos na sequência do 8 de janeiro, cuja repressão está bem distante da investigação séria e responsabilização dos verdadeiros culpados, que a Gazeta do Povo defendeu já no dia das invasões. A única coisa que sai inabalada do 8 de janeiro de 2024 no Congresso é a disposição em fazer o arbítrio soar como “democracia”.