Em 2005, o então presidente Lula elogiava seu colega venezuelano, Hugo Chávez, como um exemplo para o continente. “Eu não sei se a América Latina teve um presidente com as experiências democráticas colocadas em prática na Venezuela. Poder-se-ia até dizer que tem em excesso”, afirmou o brasileiro. Obviamente, para dizer algo assim, era preciso ignorar todos os sinais de autoritarismo crescente e que já se verificavam naquela época, como a subordinação do Legislativo e do Judiciário ao Executivo, a perseguição à imprensa independente e a hostilidade ao capital privado, que culminou em estatizações forçadas. Mas a Venezuela realizava eleições, plebiscitos e referendos, e por isso, segundo Lula, tinha “democracia em excesso”.
Se há muito tempo a Venezuela já tinha deixado de ser uma democracia segundo qualquer definição sensata, agora nem mesmo sob o estapafúrdio critério lulista ela poderia ser considerada democrática, pois o ditador Nicolás Maduro vem fugindo de um referendo revogatório como o diabo foge da cruz. O bolivariano, que tem nas mãos o Conselho Nacional Eleitoral do país, fez o órgão suspender o processo de coleta de assinaturas para a consulta popular prevista na Constituição do país e que poderia cassar o mandato presidencial. A decisão veio apesar de a oposição estar conseguindo cumprir todos os requisitos legais, como o recolhimento de um número mínimo de assinaturas – o argumento do órgão eleitoral se baseia em supostas fraudes nessa coleta.
A julgar pela situação caótica em que deixou o país, Maduro não teria a mínima condição de escapar da cassação
A julgar pela situação caótica em que deixou o país, Maduro não teria a mínima condição de escapar da cassação. E nisso reside o verdadeiro motivo pelo qual o CNE tenta bloquear a realização da votação. Nem será necessário, ao chavismo, cometer o ultraje de recusar terminantemente o referendo; basta adiá-lo até pelo menos janeiro do ano que vem, pois, neste caso, ainda que Maduro perca, será substituído por seu vice-presidente, ao contrário do que aconteceria se o ditador caísse agora, situação na qual haveria nova eleição direta para a presidência do país, com grandes chances de vitória oposicionista, assim como já ocorreu nas recentes eleições parlamentares.
Com as tensões crescentes no país e a ameaça de que o antagonismo degringole em conflito aberto entre a população e as milícias chavistas, o papa Francisco decidiu intervir e costurou um diálogo entre governo e oposição. Os protestos de rua foram temporariamente suspensos, mas nem todos os oposicionistas concordaram com a iniciativa, temendo que Maduro estivesse apenas atrás de coadjuvantes para seu teatrinho – o preso político Leopoldo López, por exemplo, criticou as negociações. E, a julgar pelo início das conversas, López pode ter razão, pois Maduro já deixou claro que não haverá nem referendo revogatório, nem antecipação das eleições presidenciais. “A MUD [Mesa de Unidade Democrática, principal coalizão oposicionista] continuará na mesa até conseguir a saída eleitoral. Alegra-me muito que a MUD vá continuar na mesa de diálogo até dezembro de 2018”, ironizou o ditador no último dia 13, referindo-se à data prevista para a próxima eleição presidencial.
No mesmo dia em que soltou esta bravata, aliás, Maduro prorrogou pela quinta vez o “Estado de exceção e emergência econômica”, que durará mais 60 dias e pelo qual o Poder Executivo ganha uma série de prerrogativas em matéria econômica. Segundo o bolivariano, o setor privado mantém uma “guerra econômica” contra o governo – o que seria um feito notável, já que o chavismo praticamente arruinou a economia do país e imobilizou a iniciativa privada.
A Venezuela entra, agora, na contagem regressiva para o fim do prazo dado pelo Mercosul para que se adapte às regras do bloco, inclusive no que se refere ao respeito à democracia. Até mesmo o Uruguai, cujo governo foi o mais relutante no ultimato a Caracas, passou a falar duro depois da suspensão do trâmite do referendo revogatório. A Venezuela, mergulhada na hiperinflação, na miséria e no caos social, sofrerá com a suspensão do Mercosul, mas só pode culpar aqueles que, no comando do país, criaram essa situação ao demonstrar um apego doentio ao poder.
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