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Editorial

A imunidade parlamentar e a liberdade de crítica esmagadas novamente

O deputado Nikolas Ferreira em sessão da Câmara de 10 de julho. (Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados)

A captura dos órgãos de investigação e acusação pelo petismo, para fins de perseguição política, segue em curso. A vítima da vez é o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal por um suposto crime de injúria que teria sido cometido contra o presidente Lula, chamado pelo deputado de “ladrão que deveria estar na prisão” durante um evento da Organização das Nações Unidas, em Nova York, em novembro de 2023. A denúncia foi apresentada na última sexta-feira, e o STF ainda não decidiu se ela será aceita ou não.

Em janeiro, o então secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, que comandava a pasta interinamente, pediu que a Polícia Federal investigasse Ferreira por ter supostamente feito um “discurso ofensivo à honra” de Lula, que havia sido condenado em duas instâncias em dois processos diferentes por corrupção passiva e lavagem de dinheiro – as condenações e os processos foram todos anulados pelo STF posteriormente. Ressalte-se a hipocrisia de um governo pedir investigação contra um de seus críticos, ao mesmo tempo em que o chefe deste governo não perde uma chance de chamar adversários políticos de “golpistas” e até mesmo de “genocidas”, sem que nem Lula, nem aqueles que repetem seu discurso destemperado acabem punidos.

Há um motivo muito simples para isso: a jurisprudência e a melhor doutrina sobre a liberdade de expressão atestam que os limites ao direito de crítica são mais elásticos quando se trata de personalidades públicas. “A crítica dirigida a pessoas públicas (como as autoridades governamentais, os candidatos ou titulares de mandatos eletivos), por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade”, escreveu Celso de Mello em 2020, citando decisão judicial datada de 1986, em uma liminar que suspendeu temporariamente os processos abusivos contra Deltan Dallagnol no Conselho Nacional do Ministério Público.

A imunidade garantida aos parlamentares por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” já está há tempos na lista de garantias constitucionais que o STF aboliu

Anos antes, julgando a ADI 4451, contra dispositivos da Lei das Eleições que criminalizavam a sátira a candidatos, o mesmo Celso de Mello já havia desenvolvido esta tese: “A crítica, qualquer que tenha sido meio de sua divulgação, quando inspirada pelo interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada, ainda mais quando dirigida a figuras públicas ou a candidatos a cargos eletivos, não traduz nem se reduz, em sua dimensão concreta, ao plano do abuso da liberdade de expressão, não se revelando suscetível, por isso mesmo, de sofrer qualquer repressão estatal ou de expor-se a qualquer reação hostil do ordenamento positivo”, afirmou. Bem mais sucinto, mas não menos eloquente, foi o relator daquela ação em seu voto vencedor: “Quem não quer ser criticado, satirizado, fica em casa”, disse Alexandre de Moraes, em uma época na qual ele ainda não havia tomado para si o papel de censor-geral da República.

Esse argumento – que, aliás, acaba de ser usado por um juiz para extinguir processo contra  um jornalista que chamou uma deputada de “Barbie fascista” – já bastaria para as autoridades engavetarem o pedido do Ministério da Justiça independentemente do cidadão responsável pela crítica a Lula; afinal, não estamos no terreno de imputações específicas de crime ou algo parecido. E, no caso de Nikolas Ferreira, ainda há um outro fator nada desprezível: o artigo 53 da Constituição Federal afirma que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” – e, quando o constituinte inseriu no caput do artigo o termo “quaisquer”, quis dizer exatamente isso: que não há exceções. Quando, portanto, o vice-procurador-geral Hindemburgo Chateaubriand afirma que a imunidade “não se estende a situações que, sendo estranhas a essa causa, a transformem em privilégio”, está ignorando a Constituição e fazendo ilações. Afinal, não há nem mesmo como alegar que a fala de Ferreira não teria conexão com seu mandato parlamentar, pois ele estava em Nova York na condição de jovem deputado, e a crítica ao governante é natural quando vinda de um oposicionista.

Em inúmeras ocasiões a Gazeta do Povo explicou o sentido da chamada “imunidade material” dos parlamentares, especialmente no caso do ex-deputado Daniel Silveira. E, se mesmo as afirmações muito mais contundentes de Silveira estavam protegidas pela imunidade desejada pelo constituinte, quanto mais as palavras de Nikolas Ferreira. Mesmo assim, em vez de simplesmente informar ao Ministério da Justiça que o deputado estava constitucionalmente protegido, a Polícia Federal iniciou uma investigação, e só concluiu pelo não indiciamento porque se tratava de crime de menor potencial ofensivo, e não porque a imunidade parlamentar garantia a Ferreira o direito de dizer o que disse. A PGR foi além, ignorando a palavra da PF e, ainda por cima, pedindo a aplicação de uma agravante, já que Lula tem mais de 60 anos.

A imunidade garantida aos parlamentares por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, no entanto, já está há tempos na lista de garantias constitucionais que o STF aboliu, ao lado da liberdade de expressão, da ampla defesa e do devido processo legal, sempre que se trata de reprimir e punir adversários do atual governo. Não será surpreendente se os ministros, então, aceitarem a denúncia da PGR contra Nikolas Ferreira, mas o fato de algo se tornar frequente não o torna nem normal, nem legítimo; só mostra que o arbítrio sempre pode crescer.

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