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No início de março, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, deu uma demonstração evidente de que era totalmente desnecessário manter presas quase mil pessoas que teriam participado da invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro ou acampado diante do Quartel-General do Exército, em Brasília, quando usou o Dia Internacional da Mulher como pretexto para determinar a soltura de quase 150 mulheres – afinal, os únicos critérios para alguém ser privado de sua liberdade ou tê-la restituída são aqueles dos códigos legais, e que não têm relação nenhuma com datas comemorativas. Nos dias seguintes, outros grupos de presos do 8 de janeiro enfim puderam deixar os presídios da Papuda (masculino) e da Colmeia (feminino), deixando quase 300 pessoas ainda detidas após a análise de todos os pedidos de liberdade provisória. Com isso, encerrou-se um capítulo dos arbítrios cometidos na repressão aos atos golpistas, mas há outros por vir.
Reportagem da Gazeta do Povo analisou as mais de mil denúncias oferecidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e constatou que elas foram feitas de maneira genérica, em um enorme “copia e cola” jurídico que altera apenas nomes e dados pessoais dos denunciados, desrespeitando alguns dos princípios mais básicos do processo penal. O maior grupo, com cerca de 800 pessoas, é o dos “incitadores” e descreve os participantes do acampamento. Estes estão sendo acusados de associação criminosa e incitação de animosidade das Forças Armadas contra as instituições democráticas. Um grupo menor – dos chamados “executores”, presos em flagrante na invasão do Planalto, do Congresso ou do Supremo – responderá por associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Uma pessoa só pode ser privada de sua liberdade pelo que efetivamente fez de criminoso; as denúncias genéricas da PGR sobre o 8 de janeiro violam esse princípio básico e deixam a porta aberta para a perpetuação do arbítrio
No caso dos “incitadores”, por exemplo, as denúncias em série se limitam a afirmar que o objetivo dos acampamentos era pedir um golpe militar para “a tomada dos Poderes Constituídos e a instalação de uma ditadura” e que o acampado em questão “aderiu a essa associação, cujo desiderato era a prática de crimes contra o Estado Democrático de Direito”, bastando a sua presença no local para que lhe sejam imputados os crimes. Que havia um animus golpista movendo muitos dos que estavam nos acampamentos é algo que reconhecemos quando eles ainda estavam montados, embora também tenhamos mencionado a possibilidade de muitas pessoas ali presentes se guiarem por uma leitura totalmente equivocada da Constituição, julgando haver um amparo legal em uma “intervenção militar”, em um erro de interpretação que dificultaria sua responsabilização objetiva. A questão, entretanto, nem é essa, mas o fato de que as denúncias não descrevem em nenhum momento as condutas individuais – se o acusado levou faixas ou cartazes pedindo golpe de Estado, ou se entoou slogans golpistas, ou se chegou a conversar com militares neste sentido. Ou seja: falta o que, no jargão jurídico, se chama de “individualização da conduta”.
A necessidade de tal individualização é evidente mesmo para quem não tenha formação jurídica. Afinal, uma pessoa só pode ser privada de sua liberdade pelo que efetivamente fez de criminoso; mesmo quando se trata de crimes cometidos coletivamente, seja um ataque em grupo, seja um esquema de corrupção, o papel e a ação de cada indivíduo precisam ser devidamente descritos para que todos sejam punidos de acordo com a gravidade de seus atos. As denúncias genéricas da PGR sobre o 8 de janeiro, portanto, violam esse princípio básico e deixam a porta aberta para a perpetuação do arbítrio.
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Seria possível alegar que a PGR teria a chance de realizar essa individualização em uma fase posterior, durante os julgamentos. No entanto, a jurisprudência do STF aponta para a rejeição das denúncias em que falta a descrição detalhada dos crimes atribuídos a cada acusado: ao menos desde 2016, Supremo, STJ e cortes de instâncias inferiores têm recusado denúncias carentes de individualização em casos diversos, que incluem esquemas de corrupção, crimes societários e formação de milícias – o episódio mais célebre foi a anulação, em 2016, das sentenças dos policiais acusados pelo massacre de presos no Carandiru. Se aceitar as denúncias genéricas, portanto, o Supremo estará revertendo seu entendimento – o que, a bem da verdade, não é uma raridade quando se trata da suprema corte brasileira.
O que não falta, no caso do 8 de janeiro, é documentação – imagens produzidas por câmeras de segurança que registraram a invasão das sedes dos três poderes, fotos e vídeos feitos pelos próprios denunciados nos acampamentos, publicações em mídias sociais. A PGR, que se imagina estar ciente do entendimento do STF a respeito da necessidade de individualização de condutas já no momento da apresentação da denúncia, teve ao menos dois meses para analisar todo esse material; se o melhor que conseguiu produzir foram denúncias genéricas e idênticas, estamos diante de um autêntico descaso na investigação do ato mais grave da vida política nacional dos últimos meses, que não se resumiu a mero vandalismo, mas foi “o ponto culminante de um movimento que pretendia uma ruptura antidemocrática após a vitória de Lula nas urnas em outubro de 2022”, como já descrevemos em outra ocasião, ainda que nem todas as pessoas ali presentes tivessem a exata percepção disso ou compartilhassem dos mesmos objetivos em todos os seus detalhes. E essa apuração feita sem critério, caso seja aceita pelo STF no momento de julgar o 8 de janeiro, deixará as portas abertas para um arbítrio ainda maior que o das prisões preventivas: o de sentenças definitivas sem que ninguém saiba ao certo o que cada condenado fez para merecer sua pena.