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Editorial

Os depoimentos dos generais e a ruptura que não houve

Freire Gomes
General Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército, afirmou em depoimento que Jair Bolsonaro chegou a cogitar decretar estado de defesa, estado de sítio ou Garantia de Lei e da Ordem perto do fim do mandato. (Foto: Alan Santos/Presidência da República)

Em 15 de março, o ministro do STF Alexandre de Moraes levantou o sigilo de 27 depoimentos de investigados na Operação Tempus Veritatis, deflagrada em 8 de fevereiro e que apura um suposto plano para um golpe de Estado que teria como objetivo a manutenção de Jair Bolsonaro no poder, ou ao menos a anulação das eleições de outubro de 2022. Atitude bastante incomum, já que a regra do STF tem sido o segredo – é o caso, por exemplo, de quase todo o inquérito das fake news, de seus inquéritos derivados e das célebres imagens do aeroporto de Roma (neste caso, o relator é Dias Toffoli, mas o episódio envolvia Moraes diretamente). Mesmo condenando este mau hábito de esconder quase tudo e divulgar apenas o que é conveniente para reforçar as narrativas desejadas pelos ministros, é preciso analisar o que disseram os investigados que relataram algo aos policiais – muitos outros, como o ex-presidente Bolsonaro, o ex-assessor Filipe Martins, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira preferiram usar seu direito constitucional de permanecer em silêncio.

Os depoimentos mais relevantes são os do general Marco Antônio Freire Gomes e do brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior, que comandavam, respectivamente, o Exército e a Aeronáutica no fim de 2022. Ambos relatam que Bolsonaro estaria estudando a possibilidade de usar instrumentos como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ou até mesmo o estado de defesa ou estado de sítio; Freire Gomes e Baptista Junior tentaram, segundo seus relatos, demover Bolsonaro da ideia, enquanto Garnier teria dito que apoiaria o então presidente.

O depoimento do ex-comandante da Aeronáutica ainda menciona uma reunião em 7 de dezembro de 2022 na qual fora apresentada uma minuta que “decretava a realização de novas eleições e a prisão de diversas autoridades do Judiciário” – informação que não é atribuída a Baptista Junior, mas aos agentes da Polícia Federal que o interrogavam, até porque o brigadeiro não estivera presente a essa reunião. Estas providências específicas, no entanto, não estão em nenhum dos dois documentos reproduzidos integralmente no depoimento do general Freire Gomes, um dos quais decreta estado de defesa no TSE e a criação de uma Comissão de Regularidade Eleitoral. O general e o brigadeiro ainda disseram ter sofrido pressão interna e pelas mídias sociais por sua postura contrária a qualquer medida que servisse para impedir a transição na Presidência da República.

A existência de um plano não autoriza que seus protagonistas sejam perseguidos e punidos por aquilo que não passou das fases de cogitação e planejamento

Antes de prosseguir na análise daqueles acontecimentos, no entanto, é preciso compreender o contexto mais amplo. Os dois ex-comandantes deixam evidente que havia um clima de verdadeira indignação da parte de Bolsonaro e seu entorno com o resultado do pleito de outubro de 2022. O mesmo se pode dizer de milhões de apoiadores do ex-presidente. E as razões para tal são públicas e notórias. Todo o processo que culminou com a posse de Lula foi recheado de barbaridades jurídicas, a começar pela própria anulação dos processos nos quais o petista havia sido condenado, em 2021, passando pela declaração de suspeição do ex-juiz Sergio Moro e chegando ao processo eleitoral, em que a atuação do TSE foi claramente enviesada, impedindo que informações verdadeiras, mas desabonadoras em relação a Lula fossem divulgadas enquanto a campanha do petista tinha passe livre até para publicar direitos de resposta contendo fake news. Cada decisão absurda do STF e do TSE foi alvo de críticas nesta Gazeta do Povo, e seu conjunto pode muito bem ter levado muita gente a considerar que “golpe” não era o que Bolsonaro pretendia: era o que os tribunais superiores já haviam feito, contando com a omissão do seu contrapeso constitucionalmente instituído, o Senado Federal. E os ministros teriam até mesmo confessado seu intento, como no famoso “derrotamos o bolsonarismo” de Luís Roberto Barroso.

Mesmo neste caso, entretanto, é preciso ponderar que os caminhos cogitados naqueles dias de novembro e dezembro de 2022 não ofereceriam a solução institucional desejada. É verdade que tanto a GLO quanto os estados de defesa e de sítio estão previstos na Constituição, nos artigos 142, 136 e 137 a 139 respectivamente. Mas a leitura desses trechos da Carta Magna também nos mostra que nenhum desses instrumentos teria o condão de prolongar o mandato de Bolsonaro em um único dia, quanto mais de permitir uma anulação de eleições – Freire Gomes e Baptista Junior insistiram nesse ponto ao tentar demover Bolsonaro da ideia de publicar um decreto.

Além disso, há uma ausência notável em toda a articulação descrita nos depoimentos: a dos atores políticos. GLO e estado de defesa precisam de aprovação do Congresso Nacional, e o estado de sítio nem pode ser decretado sem o aval prévio do Legislativo. O Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional precisam ser consultados antes de o estado de defesa ser decretado ou de se pedir permissão para decretar estado de sítio, e esses órgãos incluem os presidentes da Câmara e do Senado, líderes de maioria e minoria em ambas as casas, e os ministros das Relações Exteriores e do Planejamento. Nenhum deles aparece em momento algum nos relatos, ainda que fosse obrigatório consultá-los nos casos de estados de defesa e de sítio, ou que ao menos os parlamentares fossem sondados sobre as chances de aprovação de uma eventual GLO. Se chegou a haver, por parte de Bolsonaro, a intenção de buscar apoio político no Congresso, ela ao menos não esteve presente nos depoimentos. Os protagonistas ali são sempre (e quase que exclusivamente) os militares, tornando plausível a hipótese de que Bolsonaro pretendia se apoiar na força das armas, não em qualquer caminho constitucionalmente previsto. Em outras palavras, o que estava no horizonte seria mesmo a ruptura institucional, ainda que justificável na avaliação do presidente como reação ao que via como outra ruptura, promovida pelo Judiciário.

No entanto, como bem sabemos, nenhum decreto foi publicado e Lula subiu a rampa do Planalto, o que nos leva a uma questão crucial: como classificar o que está descrito nos depoimentos. A ruptura parece ter sido desejada, cogitada, até mesmo planejada, mas não chegou a ser colocada em prática. As minutas ficaram nas gavetas, as tropas ficaram nos quartéis. Ou seja, das quatro fases do iter criminis – cogitação, preparação, execução e consumação –, apenas as duas primeiras teriam sido percorridas, e elas são exatamente as duas que o Direito Penal não pune; a doutrina e a jurisprudência são claras a respeito da necessidade, para efeitos de responsabilização penal, de haver ao menos a tentativa, que, segundo o artigo 14, II, do Código Penal, acontece quando, “iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Ainda que os artigos 359-L e 359-M usem na descrição o verbo “tentar” (ao contrário de outros crimes), eles também mencionam o uso de “violência ou grave ameaça”, o que não ocorreu; para incriminar Bolsonaro e outros investigados usando estes dois artigos, seria preciso afirmar que eles “tentaram tentar” um golpe, provocando uma discussão bizantina.

Embora se trate de outro país, com outro ordenamento jurídico, há um exemplo próximo, recente e bastante ilustrativo: o autogolpe frustrado de Pedro Castillo no Peru, em dezembro de 2022. Diante da possibilidade de sofrer o impeachment, o peruano efetivamente assinou a dissolução do Congresso, a convocação de novas eleições parlamentares e um toque de recolher, entre outras medidas. No entanto, nem os parlamentares, nem o Judiciário, nem as forças de segurança aderiram à aventura e Castillo terminou preso. Aqui, sim, podemos dizer sem sombra de dúvida que houve a execução (ainda que malsucedida), o que já basta para a persecução penal. Já no caso brasileiro esse limite não chegou a ser ultrapassado. Pode-se até discutir se houve outros crimes – por exemplo, se a tentativa de convencer oficiais a aderir constituiria incitação, ou se haveria constrangimento ilegal no caso da campanha midiática contra os generais Freire Gomes e Baptista Junior. Mas seguimos rechaçando a possibilidade de persecução penal pelos crimes de golpe de Estado ou abolição violenta do Estado de Direito, embora saibamos muito bem que, no Brasil de hoje, vale menos a lei que a vontade do julgador.

Alegando “defender a democracia”, ministros dos tribunais superiores têm agido de forma completamente antidemocrática, restringindo liberdades e interferindo no processo eleitoral. Mas, mesmo admitindo este quadro, é forçoso reconhecer que também seria contraditório “restaurar a democracia” partindo para uma ruptura institucional. Os relatos de Freire Gomes e Baptista Junior apontam para a existência de um plano que felizmente não se concretizou, mas a existência desse plano não autoriza que seus protagonistas sejam perseguidos e punidos por aquilo que não passou das fases de cogitação e planejamento. Do contrário, não teremos lei nem justiça, mas lawfare e justiçamento.

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