A votação que não cassou Natan Donadon tem tudo para configurar um caso de "habeas corpus preventivo" para os atuais deputados, agora mais seguros de que poderão manter seus mandatos, ainda que cometam delitos semelhantes ou piores que os que levaram o parlamentar à cadeia
A Câmara Federal acrescentou mais uma vergonhosa página na sua enciclopédica história de atos de desrespeito a si mesma e às demais instituições republicanas. Essa página diz respeito à decisão de não cassar, em votação secreta em sessão de anteontem à noite, o mandato do deputado Natan Donadon (sem partido-RO), condenado pelo STF e cumprindo pena de prisão na penitenciária da Papuda, em Brasília, por crime de corrupção. Pelo regimento da Casa, seriam necessários 257 votos favoráveis à cassação, mas 108 parlamentares faltaram e outros 41, embora presentes, abstiveram-se; 233 votaram pela perda do mandato, 24 a menos do que o mínimo regimental.
O episódio tem tudo para configurar um caso de "habeas corpus preventivo" para os atuais deputados, agora mais seguros de que ainda que cometam delitos semelhantes ou piores que aqueles que pesam contra Donadon poderão manter seus mandatos. O que nada mais é do que um brado em favor da impunidade e um tapa na cara do povo brasileiro, este mesmo que há pouco mais de dois meses tomou as ruas para protestar contra toda sorte de malfeitorias servidas pela inesgotável caixa de Pandora que infesta os poderes públicos no país.
A assombrosa atitude corporativista dos deputados representa uma outra ameaça passível de se tornar realidade. Se foram capazes de absolver um colega que se encontra atrás das grades porque contra ele existem provas de ter cometido crime de corrupção ativa, por que não seriam capazes também de preservar os mandatos dos mensaleiros condenados pelo Supremo Tribunal Federal e prestes a cumprir penas de reclusão? Neste caso, quatro deputados condenados podem muito bem alimentar a esperança de manter suas cadeiras na Câmara, dentre eles os notórios José Genoino e João Paulo Cunha. Esse último, assim como Donadon, terá de cumprir pena em regime fechado; mais "feliz", Genoino pegou regime semiaberto, o que faz pensar em uma situação absolutamente surreal: o petista acorda na cadeia, se arruma e, acompanhado dos carcereiros, vai ao Congresso trabalhar durante o dia; e, à noite, volta ao xadrez.
Por não se darem ao respeito, os deputados que desrespeitaram a própria instituição da qual fazem parte afrontam também outra instituição: o Judiciário, que, mal ou bem, cumpre o seu papel de aplicar a lei. Aplicou-a no caso de Donadon da mesma forma com que o faz em relação à Ação Penal 470, na qual figuram como réus os envolvidos no mensalão. Dos 35 levados a julgamento nessa ação, 25 foram condenados quatro deles, como já vimos, no exercício de mandatos parlamentares.
A desfaçatez não termina por aí, pois ainda se discute se a família de Natan Donadon deve ou não desocupar o apartamento funcional em que o deputado morava antes de fixar residência na Papuda! Seus salários foram suspensos e, em razão da obrigatória ausência aos trabalhos da Câmara, seu suplente já foi convocado situação que nos acostumamos a ver quando o titular do mandato é nomeado para algum cargo importante, como ministério ou secretaria, mas não quando o detentor do mandato vai cumprir pena em uma penitenciária. Tudo muito risível, não fosse trágico. Só serve de consolo, se é que isso seja possível, o fato de que não veremos Donadon retomar seu posto no Congresso, já que, mesmo se apresentar bom comportamento, ele só deixará o regime fechado depois que seu mandato tiver terminado. De qualquer maneira, o absurdo está feito: mantém-se o substantivo no cargo e passa-se ao debate dos adjetivos, quando o certo seria extirpar os dois da enciclopédia da tolerância e da impunidade.
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