Um dia depois de ter baixado a cabeça diante do governo, com a aprovação pelo Senado do nome de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional adotou uma postura completamente diferente na sessão conjunta que analisou uma série de vetos presidenciais a projetos de lei aprovados no Legislativo. Os deputados e senadores derrubaram vários desses vetos, incluindo o referente ao marco temporal, com isso restabelecendo – ao menos temporariamente – a segurança fundiária ao estabelecer critérios mais claros para a definição da posse da terra.
Foram várias semanas de articulação, especialmente por parte da bancada do agronegócio, e o resultado não deixa dúvidas sobre o apoio do Congresso ao texto vetado por Lula. Durante a tramitação regular, o projeto de lei havia passado com os votos de 283 deputados em maio e 43 senadores em setembro; na sessão de quinta-feira, os vetos de Lula foram derrubados com 321 votos na Câmara e 53 no Senado. Permaneceram apenas cinco vetos presidenciais a questões menores do projeto de lei, referentes, por exemplo, ao contato com indígenas isolados e ao uso de produtos transgênicos dentro das terras indígenas.
Como o PT promete questionar no STF a legislação sobre o marco temporal, não há como darmos como garantida a restauração da tranquilidade no campo com a derrubada dos vetos
O texto aprovado pelo Congresso e, agora, restaurado quase que integralmente após a derrubada dos vetos tem o mérito de estabelecer um critério bastante objetivo para as disputas sobre a posse de terras, sem deixar de reconhecer que há casos controversos. O artigo 231 da Constituição diz que são dos indígenas as terras que eles “tradicionalmente ocupam”, e o tempo verbal não deveria deixar dúvidas a respeito da data de 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada, como critério temporal – o que, aliás, o Supremo havia afirmado em 2009 quando julgou a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. No entanto, em setembro deste ano, STF reverteu a própria jurisprudência, ainda por cima fixando uma tese que daria margem a desapropriações oportunistas. O ativismo judicial da corte foi o empurrão final de que o Senado precisava para aprovar o projeto que seria depois vetado por Lula.
Não há como ignorar que há casos em que indígenas foram forçados a deixar suas terras, muitas vezes de forma violenta. É por isso que um trecho da lei restaurada pelo Congresso afirma que o marco temporal não se aplica em caso de “renitente esbulho devidamente comprovado”, definido no parágrafo seguinte como “o efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada”. Repare-se que a existência de disputa judicial formalizada nem é condição sine qua non para o afastamento do marco temporal em caso de terras disputadas, bastando as “circunstâncias de fato”.
O petismo, obviamente, já avisou que levará o caso ao Supremo – desrespeitando um acordo feito antes da votação de quinta-feira, pelo qual os parlamentares favoráveis ao marco temporal concordaram em manter cinco dos vetos de Lula à lei. O recurso ao STF como maneira de contornar a vontade dos representantes do povo no Congresso já é prática antiga da esquerda, mas recentemente o próprio Lula admitiu que conta com a corte para conseguir o que não tem como obter pelos meios normais da discussão política. No início do mês, durante sua viagem a Dubai, o petista, em reunião com representantes da sociedade civil organizada, afirmou que “é só olhar a geopolítica do Congresso Nacional que vocês sabiam que a única chance que a gente tinha era o que foi votado na suprema corte”. Em outras palavras, o mesmo povo que elegeu Lula também elegeu um Legislativo majoritariamente de centro-direita; por isso, em vez de negociar, basta ao governo deixar que o STF, cujos integrantes são bem mais simpáticos às pautas sociais da esquerda – do identitarismo às questões ambientais – que os congressistas, atue dando a palavra final, o que faz do Supremo um agente político, papel que os ministros exercem com grande gosto.
É por isso que não há como darmos como garantida a restauração da tranquilidade no campo com a derrubada dos vetos. O mesmo Supremo que, na prática, já declarou inconstitucional o artigo da Constituição sobre o marco temporal, e que atropela a Carta Magna o tempo todo em outros assuntos, pode muito bem insistir que a lei é a vontade dos ministros, e não o que os representantes do povo deliberaram – mais de uma vez. Curiosamente, comentando a decisão do STF no fim de setembro, seu presidente, Luís Roberto Barroso, deu uma explicação que condiz muito mais com o conteúdo da lei aprovada e restaurada que com a tese fixada pelo Supremo. Em breve o Brasil saberá se o ministro realmente leva a sério o que diz.
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