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Editorial

Derrubando o próprio passado

Estátua de Cristóvão Colombo com a cabeça removida em Boston, em 10 de junho de 2020. A estátua foi decapitada durante a noite anterior. (Foto: Tim Bradbury/Getty Images/AFP)

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A escala mundial que alcançaram as manifestações em decorrência da morte de George Floyd traz por si só importantes desafios a homens públicos, a estudiosos e a quaisquer cidadãos interessados na compreensão de seu tempo, e dá pistas acerca do ethos, do modo de ser, por assim dizer, da sociedade atual. Se por um lado evidencia, em muitas partes do mundo, uma disposição extraordinária de protagonismo, de disposição das pessoas da rua de mobilizarem-se por uma causa nobre, de levarem adiante propostas para melhorar a vida em comum, por outro põe à nu relevantes deficiências em termos de cultura democrática e de cultura à tolerância.

Não é caso de deter-se aqui na aberração que supõe o impulso a depredar, a saquear e a cometer violência contra quem se opõe a esses ímpetos niilistas. Por seu caráter simbólico, pelo poder que tem de revelar parte do pano de fundo cultural por trás desses movimentos, merece uma consideração especial, no entanto, a insensatez das pichações e depredações de estátuas de personagens históricas, fatos que estão a ocorrer em algumas das cidades mais importantes do globo.

Chama a atenção, sobretudo, que esses atos tenham acontecido com maior notoriedade justamente na Inglaterra e nos Estados Unidos, países de forte tradição democrática e, mais do que isso, países berço dessa mesma tradição.

Na Inglaterra, manifestantes do Black Lives Matter picharam a estátua de Winston Churchill com os dizeres “was a racist” [era um racista]. Talvez os vândalos não tenham memória histórica suficiente para saber que o ex-primeiro ministro britânico foi um dos mais bravos defensores da liberdade no ocidente, lutando com seus compatriotas contra um dos regimes mais terríveis que o mundo já presenciou, o nazismo (ideologia verdadeiramente racista).

Já nos Estados Unidos o alvo das depredações foi Cristóvão Colombo, o descobridor da América. Estátuas do explorador espanhol (ou italiano, esta é uma querela que parece não ter fim) foram decapitadas, tombadas, pichadas. Um furor simbólico que talvez fosse justificado apenas contra um ditador sanguinário, esquecendo que Colombo transportou para América justamente a sociedade que, ao longo do tempo, conseguiu gerar uma consciência mais perfeita do mal que o racismo representa.

Um primeiro déficit evidente nesses dois movimentos simbólicos é o democrático. Quem ousa depredar um patrimônio comum, obras de arte de maior ou menor valia, segundo o caso, mas que ornam os espaços de uso geral e que ali foram colocados dentro da história daquela comunidade, tem antes de tudo alma de ditador, de autocrata, que julga poder fazer valer suas razões e convicções contra todos os demais pela violência, ainda que as vias democráticas estejam totalmente abertas: discussão na câmaras de vereadores ou parlamentos locais, abaixo-assinados, mobilizações públicas, etc. Desprezam, a ponto de agressão, todos os demais que têm visões diversas da sua e que talvez julguem com razoabilidade que a presença das estátuas traduza valores importantes que queiram preservar.

Mas se o déficit democrático é extremamente preocupante, não o é menos o segundo, o déficit de compreensão da falibilidade e da imperfeição humanas, com tudo o que pode trazer de intolerância e obscurantismo.

Nenhum homem é perfeito, ninguém está blindado contra vícios, equívocos, convicções mal fundadas, e influências da visão de mundo de seu próprio tempo, mesmo quando simultaneamente seja portador de grandes virtudes e ideais. Faz parte da condição humana esse jogo de claro-escuro, de virtudes e de vícios, que, no conjunto, engrandece o homem como um ser capaz de construir o seu próprio destino e a história de seu povo. Julgar de forma definitiva, taxativa e depreciativa qualquer um apenas porque, no quadro de sua vida, há algo que desdiz de sua grandeza é julgar de forma definitiva a totalidade da humanidade; é impedir a lógica do reconhecimento do mérito, que se dá normalmente de forma situada histórica e tematicamente, quer dizer, em função de uma específica contribuição que a pessoa deu e que pode ser fruto da dedicação de toda uma vida ou de uma ação momentânea, mas valiosa.

Se não aprendermos a olhar os aspectos positivos da contribuição dos homens que deixaram marcas importantes na história estaremos condenados a um revisionismo contínuo, incessante e doentio. E isso não faz o menor sentido. Churchill pode ter, sim, proferido declarações polêmicas que expressavam preconceitos da época. Estas, porém, não diminuem o fato de ele ter liderado a nação que lutou por um longo período sozinha contra Alemanha Nazista. E é justamente por esse motivo que lhe erigiram uma estátua na Praça do Parlamento, no coração de Londres. Colombo, por sua vez, como homem de sua época, pode não ter se insurgido contra a escravidão, mas fez da coragem e do fato de ser um visionário uma contribuição extraordinária para a humanidade.

Nesses dois casos, substancialmente suas vidas não se reduzem a seus defeitos, nem são esses que os definem, nem é por eles que foram homenageados. Diferente seria naquelas hipóteses, mais raras, em que, sim, a homenagem é pelo que é reprovável e intolerável e que, eventualmente, caracteriza essencialmente a vida de quem foi imortalizado numa estátua. E mesmo aqui, o caminho para a retirada do símbolo é a via democrática e nunca a da violência. A depredação acaba sendo mais compreensível apenas quando há uma ruptura institucional ou mudança de regime, ou seja, quando não se está pisando solo democrático. É o que aconteceu, por exemplo, com a queda do Muro de Berlim, que significava o fim do regime comunista na então Alemanha Oriental.

Winston Churchill e Cristóvão Colombo. Dois personagens símbolos da luta por avançar e levar o homem a novas fronteiras de desenvolvimento e progresso. Mesmo que tivessem defeitos, devemos muito a eles; e os próprios vândalos, que desfiguraram suas estátuas, deveriam dar-se conta disso. Urge reforçar a cultura democrática e a cultura da tolerância.

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