Nestes tempos em que tanto se fala de riscos e ameaças à democracia, com o avanço – às vezes real, às vezes imaginado – de regimes hostis às liberdades democráticas, quanto mais ferramentas a sociedade tiver para olhar dentro de si mesma e descobrir, ali, as convicções que fortalecem ou que minam a democracia, melhor. E, por democracia, não podemos entender apenas a participação periódica em eleições – afinal, até mesmo regimes claramente ditatoriais realizam seus pleitos –, mas todas as condições que permitem a cada indivíduo realizar-se da maneira que julgar melhor, com um olhar forte para o bem comum. Em democracias fortes, a liberdade é vista com apreço, os cidadãos participam da vida política de suas comunidades, se unem em torno de causas comuns, ouvem e são ouvidos.
Foi com essas ideias em mente que o Instituto Sivis apresentou, na quinta-feira, os resultados de seu Índice de Democracia Local referentes à cidade de São Paulo. A metodologia de uma pesquisa aplicada anos atrás em Curitiba foi aperfeiçoada para a capital paulista, e o novo questionário será levado a várias outras metrópoles. Em uma escala de zero a dez, a cidade terminou com um índice de 5,67. Das cinco dimensões que formam o IDL, as três melhores notas vieram nos itens “processo eleitoral”, “liberdades e direitos” e “funcionamento do governo local”, todos avaliados por especialistas e que fazem um diagnóstico mais institucional a respeito do funcionamento do poder público. As duas piores notas vieram justamente nas dimensões medidas pelas entrevistas com a população: “participação política” (4,14) e “cultura democrática” (4,55). Se as opiniões dos paulistanos servirem de modelo para a média dos brasileiros, temos um enorme desafio pela frente.
A apatia, o individualismo e o déficit democrático servem apenas aos que pretendem governar para si mesmos, sem ser questionados
Quando 40% dos paulistanos afirmam que não iriam às urnas se o voto fosse facultativo, há motivos suficientes para se ligar o alerta. Mas a participação política, como já lembramos, não ocorre apenas no momento de ir às urnas, ou pela filiação a um partido. Ela ocorre em vários momentos e instâncias: protestos de rua, organização da sociedade civil por meio de associações e campanhas, participação em fóruns virtuais, busca do poder público para reivindicações. A pesquisa do Instituto Sivis descobriu uma ligação importante entre conhecimento e participação política. Seis em cada dez paulistanos não souberam identificar nenhuma instituição política ou instrumento de participação popular como a Lei de Acesso à Informação. Apenas dois em cada dez sabiam as atribuições de prefeitos e vereadores. Mas os que demonstraram maior conhecimento tendem a ter mais participação política, tanto em termos eleitorais quanto em termos mais amplos, como o associativismo.
Quando o cidadão não sabe como funcionam as instituições, quais são suas competências, a quem recorrer quando necessário, ele não tem como se fazer ouvir, limitando-se a comparecer às urnas de dois em dois anos e a inevitavelmente decepcionar-se com seus representantes, muitas vezes por não saber o que exatamente cabe a cada um deles. O risco, neste caso, é o da relativização da importância da democracia e de uma série de liberdades – de ir e vir, de associação, de expressão, profissional, religiosa e tantas outras. E o apreço pelo regime democrático efetivamente anda em baixa. Apenas 37,5% dos entrevistados (ou pouco mais de um terço) afirmaram concordar totalmente que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Mas mesmo dentro deste grupo a compreensão a respeito da importância das liberdades democráticas, da separação de poderes e do sistema de freios e contrapesos é limitada. Diante da afirmação “Quando há uma situação difícil, não importa que o governo passe por cima das leis, do Congresso e das instituições com o objetivo de resolver os problemas”, menos da metade (47,2%) daquele grupo que inicialmente havia manifestado preferência irrestrita pela democracia disse discordar totalmente da frase – os demais, portanto, tolerariam algum grau de relativização. A boa notícia está no fato de a porcentagem daqueles que não admitem nenhum tipo de enfraquecimento da democracia subir para 68,1% entre os entrevistados que já fizeram algum tipo de curso sobre o sistema político brasileiro, em mais uma demonstração de que o conhecimento ajuda a fortalecer a cultura democrática.
Ao desconhecimento e à decepção se junta a desconfiança, em um círculo vicioso. A pesquisa revelou um descrédito generalizado em relação às instituições como os três poderes ou os partidos políticos, todos com índices de confiança abaixo dos 30% – alguma desconfiança é esperada, fruto de uma saudável vigilância e postura crítica, mas um resultado tão baixo reflete algo mais, um desapreço pelas próprias engrenagens democráticas. Os números preocupantes, no entanto, não param por aí. Ainda mais grave é o grau de desconfiança interpessoal: 80,7% dos entrevistados disseram confiar na família, mas a porcentagem cai para 36,8% quando se trata de confiar em conhecidos, e para ínfimos 3,6% quando se trata de desconhecidos que vivem na mesma cidade, e 2,8% para desconhecidos que vivem no mesmo país. Números como esses mostram um cenário que ameaça gravemente a cooperação entre cidadãos. Sem essa disposição de unir esforços por um ideal, os indivíduos perdem força diante do poder público e a sociedade se desagrega.
Essa disposição anula os benefícios da confiança mútua dentro de uma sociedade, e que são tão evidentes que deram origem a expressões como “sociedade de confiança”, título de uma obra emblemática do francês Alain Peyrefitte. Há diferenças radicais entre uma comunidade na qual se pressupõe a boa fé das pessoas e uma comunidade na qual se dá por praticamente certo que os outros têm sempre intenções escusas e estão sempre prontos a passar rasteiras nos demais. A confiança, ou a falta dela, tem reflexos variados que vão desde a redação de leis e contratos até as relações do dia a dia. Em uma sociedade onde as pessoas não confiam umas nas outras, é muito mais difícil fazer prosperar o associativismo, a união de cidadãos em torno dos mais diversos interesses comuns e que dá vibração a uma comunidade, além de oferecer instâncias intermediárias que empoderam o indivíduo diante do Estado.
Confiança mútua e conhecimento sobre o funcionamento das instituições e valores democráticos são estímulos para a participação do cidadão na vida de sua comunidade, tanto por meio do associativismo quanto da atuação política, pelo voto e pelo uso dos mecanismos que dão voz ao cidadão e a grupos organizados. A apatia, o individualismo e o déficit democrático servem apenas aos que pretendem governar para si mesmos, sem ser questionados – um quadro que urge reverter.