Depois de muito prometer que só se retiraria da disputa pela Casa Branca caso tivesse confirmada alguma condição de saúde realmente grave, o presidente norte-americano, Joe Biden, anunciou no domingo que desistiu de buscar a reeleição – um anúncio simples, sem maiores justificativas, afirmando apenas que fazia o que julgava ser o melhor para o Partido Democrata e para os Estados Unidos. Esta é a primeira vez em mais de 50 anos que um presidente em primeiro mandato abre mão da candidatura à reeleição; a última vez que isso ocorrera foi em 1968, quando o também democrata Lyndon Johnson abandonou as primárias ainda no início, em março daquele ano.
As circunstâncias daquela desistência eram um pouco diferentes, com os democratas bastante divididos a respeito da participação norte-americana na Guerra do Vietnã; desta vez, o partido estava razoavelmente unido em torno de Biden até que ele começasse a dar sinais preocupantes, especialmente depois de seu desempenho catastrófico em um debate contra um afiado Donald Trump. As pressões para que ele desistisse vieram de todos os lados: políticos democratas, personalidades e grandes jornais alinhados com o partido passaram a pedir que Biden desse lugar a outro candidato. Se Biden realmente tomou a decisão de livre e espontânea vontade, ou se foi forçado a fazê-lo, no entanto, agora é o que menos importa. Mais relevante é a discussão sobre o nome que substituirá Biden e como a escolha afetará uma eleição que muitos consideravam fácil para Trump, ainda mais depois que o republicano sobreviveu a uma tentativa de assassinato no fim de semana anterior.
Kamala Harris, embora não seja tão radical quanto outros democratas, não representaria uma mudança para o centro em comparação com Biden
A grande pergunta é se o Partido Democrata tem algo a oferecer ao eleitor moderado, sem uma preferência partidária definida. Biden anunciou apoio imediato a sua vice-presidente, Kamala Harris, mas isso não significa que ela automaticamente se torne a candidata democrata, pois será necessário esperar a convenção democrata, marcada para meados de agosto, e até lá outros membros do partido podem manifestar interesse em concorrer. Se os democratas optarem pela estratégia de buscar desde já um consenso, para evitar uma disputa fratricida que ofereça ainda mais munição para Trump, Harris se torna o nome óbvio.
No entanto, a californiana Harris, embora não seja tão radical quanto sua colega de partido Alexandria Ocasio-Cortez ou o ex-democrata (e agora independente) Bernie Sanders, não representaria uma mudança para o centro em comparação com Biden, especialmente por suas posições na agenda de costumes. Ela tem sido uma das vozes mais fortes dentro do governo em defesa de um suposto direito ao aborto, e era favorável à legalização da maconha em todo o país quando foi pré-candidata à presidência dos Estados Unidos em 2019, desistindo antes de as primárias começarem. Isso poderia ser contrabalançado com a escolha de um vice mais moderado; a outra possibilidade seria a de que as próximas pesquisas mostrassem que as chances de vitória de Harris contra Trump seriam pequenas, o que incentivaria outros democratas a desafiá-la pela indicação do partido.
O sistema eleitoral americano, no entanto, não é propriamente desenhado para incentivar moderação; as primárias de ambos os partidos não raro se tornam concursos que premiam quem tem o discurso que mais agrada a base da legenda, mas que não necessariamente tem apelo com os eleitores de centro, aqueles que acabam definindo a disputa no fim das contas. E, a despeito de todo o discurso sobre “trumpismo” e radicalização do Partido Republicano, os dados contam uma história ligeiramente diferente: o Pew Research Center, ao medir as preferências políticas de filiados de ambos os partidos, percebeu que o fenômeno de migração do centro para os extremos se dá nas duas grandes legendas americanas, mas começou antes e foi mais intenso entre os democratas, não entre os republicanos. Independentemente disso, o certo é que a polarização parece crescer, não refluir, o que deixa o eleitor moderado na posição de buscar sempre o “mal menor” – ao menos até que surja quem rompa esse ciclo.