Ela viu nascer a indústria automobilística. E vê morrer um modelo de cidade na qual só se faz uso, não se faz troca

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O urbanismo acaba de ganhar mais uma cidade-símbolo: Detroit, Michigan, EUA. Mas não pelas mesmas razões com que outras chegaram ao posto de celebridade. Lagos, na Nigéria, é ícone por seu altíssimo grau de informalidade. Bogotá, por vencer o estigma do narcotráfico usando ciclovias e bibliotecas. Londres, por ter feito da cultura um dos motores do PIB. Barcelona, por ditar regras seguras de revitalização. A lista pode não ser longa, mas é inspiradora.

Não se sabe ainda em que caixinha colocar Detroit – em especial por causa do seu berço: viu nascer a General Motors, a Chrysler e a Ford. Não pode ser comparada à combalida Lagos, curtida na pobreza; tampouco com Bogotá. Mais se parece àquelas cidades soturnas imaginadas nos filmes de ficção científica. Vê-se dela apenas alguns sinais de um passado glorioso – ora numa fachada de mansão aristocrática, ora uma avenida espetacular, ambas corroídas, ambas sem oxigênio. Por enquanto, não há redenção nem glória em Detroit.

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No momento, a cidade falida, que perde população, dinheiro e não consegue se safar da lógica da arquitetura da destruição, parece mandar um recado. Não é nada confortável – tratar da "fria em que nos metemos". Dá a entender que há outras Detroits. Por que diabos não aconteceria? Eis o que a torna um dos mais estimulantes estudos urbanos dos séculos 20 e 21.

Há de se argumentar a conspiração da economia contra a cidade, é claro. A crise mundial, evidente. Mas sobretudo o que Detroit representa – a falência do modelo de urbe industrial, criada como um balcão de negócios, nada mais, tal como alertou, 50 anos atrás, Henri Lefebvre. Pior, serve para pensar (contra) o modelo de cidades escoradas no uso de automóveis e no consumo desordenado. São lugares pobres de significado, pois não têm memória. São abandonáveis. São desinteressantes, pois não se deram conta de que a cultura é que redime os espaços urbanos.

Aos fatos. Detroit já abrigou 1,8 milhão de pessoas. Hoje, são 700 mil. Estima-se em 100 mil o número de vazios urbanos – aqueles terrenos desocupados cuja imagem lembra o cemitério de onde surgirá Carrie, a estranha. Perto de 1 milhão de habitantes simplesmente a deixaram para trás, sem que ali fossem abertas as comportas de uma represa. É melancólico lembrar que nesse lugar sem luz nasceu Diana Ross.

Mais – a taxa de desemprego na cidade é mais que o dobro da média do país; o mesmo se diga dos índices daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza. A prefeitura pediu concordata, pois deve US$ 20 bilhões. Tem problemas grandes, aliados aos pequenos: a grade dos bueiros foi toda roubada, tal como acontece em qualquer cidade nascida e criada na linha de baixo do Equador. Há 80 mil casas abandonadas. Os índices de homicídios são os maiores do país. Os desatinos são tantos e tão diversos que tornam tediosas as mazelas de qualquer capital africana. Estamos falando dos EUA, afinal.

Em vez de sinistrose, melhor colocar Detroit na mesma baia em que correram cidades europeias igualmente quebradas. Muitas se reergueram. Bilbao? Belfast? Não se trata de um caso perdido. A questão é que ela não será jamais a Detroit do imaginário mundial. Sua arquitetura para milhões se tornou cara para os milhares que vivem ali. E não se sabe muito bem que cidade será porque os Estados Unidos já não são os mesmos. Basta dizer que, para espanto de céus e terras, a carteira de motorista já não é o documento mais importante no bolso de um americano.

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Em última análise, o que morre em Detroit é um modelo de cidade. Um modelo que fez mal a Bogotá, a Lagos, a Londres. É a receita dos subúrbios distantes, que pedem automóvel, e sua construção artificial da ideia de comunidade. É o modelo do desperdício de recursos: custa caro manter as pessoas parecidas morando em lugares tão iguais, sustentados por uma cidade ao centro, uma Detroit agonizante, ou que nome tenha esse local.

Se resta uma saída, essa é voltar ao centro, à cidade grande, ocupando-a novamente. A reviravolta implica andar nas calçadas e instalar moradias em prédios velhos e doentes. Não se sabe ao certo qual o saldo de mais esse declínio do Império Americano, mas pode-se ter certeza de que Detroit manda sinais de fumaça ao resto do mundo. Triste quem não vê.