"Precisamos falar sobre drogadição." A frase, algo chavão, expressa o atual estado do problema. Pede um retrospecto. Desde a década de 1970, o Brasil experimenta o que se convencionou chamar de luta antimanicomial. O movimento nasceu de décadas de traumas provocados pelos sanatórios e hospitais psiquiátricos, verdadeiros campos de concentração vistos com normalidade. Um dos símbolos desse combate foi o curitibano Austregésilo Carrano, autor de O canto dos malditos, livro que inspirou o filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky. Serviu de alerta geral.
Deve-se reconhecer a luta antimanicomial como um dos capítulos mais luminosos do movimento social no Brasil. O tratamento na base do choque deixou milhares de vítimas, como mostrou o livro-reportagem Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex, publicado em 2013. O movimento pôs fim a uma cultura nefasta de tolerância, que até então parecia ela mesma imune à lucidez. Deve-se colocar essa história lado a lado à que levou à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, e às conquistas do movimento negro. O país reagiu. E viu que estava fazendo a coisa certa.
As conquistas que levaram a uma reviravolta no atendimento às vítimas de drogadição, contudo, não devem ser colocadas na redoma, como se nada nem ninguém pudesse tocá-las. São políticas em construção. Por um lado, a mentalidade em relação às drogas ainda guarda alguns ranços medievais. Por outro, causa ansiedade geral a redução contínua de leitos. Em vez deles, buscam-se políticas mais orgânicas, que incluem o enfrentamento das dificuldades do paciente, da família e de seus pares. É uma estratégia de certezas indiscutíveis, mas que pelo menos no senso comum parece tropeçar no que se convencionou chamar de "epidemia do crack", tragédia que pede medidas de emergência. Diante dela, a política antimanicomial soa um tanto idealizada. Daí todo o mal-estar que essa discussão provoca.
Dizer que o mal anda mais rápido que o remédio não significa que o remédio não seja bom, mas que será derrotado por seu uso inadequado. Mas esse argumento costuma ser recebido da pior forma possível. A internação compulsória ou a política de abrigamento e bolsa, recém-implantada na gestão Fernando Haddad, na prefeitura de São Paulo, dividem opiniões, até porque as opiniões estão de fato à flor da pele, o que sugere o óbvio ululante: é preciso pensar as premissas da luta antimanicomial no contexto de drogadição galopante que assalta o país. Não se trata de voltar atrás, trata-se de entender o momento em que estamos, absolutamente fora do previsto.
Dá para conversar? Espera-se que sim. Até porque entre os filhos diletos da antimanicomial estão as novas diretrizes de atendimento de vulneráveis, desenvolvidas no governo federal. Isso vale para a população de rua, para crianças e adolescentes abandonados e em conflito com a lei e para as vítimas de drogadição. Seguem uma lógica simples diminuem os abrigamentos, aumenta-se a formação de uma rede de atendimento. Mas a questão é o tempo que uma rede exige para se formar e quem devem ser os protagonistas na sua construção. O processo, tudo indica, deveria ser homeopático, dosando a espera, a implementação de políticas e as urgências que batem à porta todos os dias, tomando de assalto pacientes e seus próximos.
Se parecer abstrato demais, basta dizer que comunidades terapêuticas, chácaras de reabilitação muitas mantidas por igrejas e ONGs soam estranhas na nova ordem. Como publicou a Gazeta do Povo na última quinta-feira, em reportagem sobre a redução de 50% nas verbas para o programa antidrogas do município, o próprio ministro da Saúde, Arthur Chioro, é reticente com as comunidades de apoio. Vê-as como espaços de segregação. Um mal desnecessário. Mas nem precisaria ele dizer as novas ordens federais já o dizem, deixando em polvorosa o setor de atendimento mais tradicional, ignorando todo o bem que essas comunidades já fizeram e continuam fazendo, e deixando implícita aquela mentalidade estatólatra que despreza as soluções criadas pela comunidade.
O andor anda rápido demais. Devagar com o andor: pode se repetir nas casas de apoio e abrigos o que aconteceu nos hospitais, na última década. Sem leitos, sem vagas e sem práticas de atendimento amadurecidas, o novo não vigora. No seu lugar, o caos. A conta pode ser alta. A luta, perdida.
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