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Em 17 de março de 2014, foi deflagrada a primeira fase da Operação Lava Jato, assim chamada em referência a um posto de combustíveis em Brasília que, segundo investigações anteriores, pertencia a um doleiro envolvido em atividades de lavagem de dinheiro. Assim começava aquela que seria a maior operação de combate à corrupção da história do país. Dez anos depois, afirmamos com toda a convicção que a Lava Jato foi histórica – pelas dimensões do esquema que ela conseguiu desvendar, pela enorme qualidade técnica do trabalho feito, pelos resultados inéditos que obteve, e infelizmente também pela reação que despertou e por seu desmonte, que exigiu uma mobilização sem precedentes de diversas forças em vários órgãos, instituições e poderes da República.
As investigações descobriram um enorme esquema, envolvendo o petismo, partidos aliados e empreiteiras, para sangrar a Petrobras por meio de contratos da petrolífera e propinas destinadas a irrigar um projeto político de perpetuação no poder. E logo ficou demonstrado que a Petrobras não era a única estatal escolhida como alvo; várias outras empresas e obras públicas eram usadas da mesmíssima forma. O petrolão tinha, na verdade, inúmeras ramificações, espalhadas por todo o país e que resultaram em desvios bilionários. Um esquema construído de forma bem mais intrincada que seu antecessor, o mensalão.
Com a Lava Jato, o brasileiro, que vira com desgosto a forma como os mensaleiros haviam tido penas reduzidas, inclusive sendo beneficiados com indultos, recuperou a esperança na moralização da política e no fim da impunidade
Investigar o esquema, expô-lo ao país inteiro, reunir as provas necessárias para denunciar e conseguir a condenação dos corruptores e dos corruptos não era tarefa simples. Felizmente, a Lava Jato pôde contar com a dedicação de dezenas de agentes públicos empenhados no bom combate à corrupção, que usaram toda a sua inteligência e seu conhecimento da lei, aplicando-a com rigor – sem nunca ultrapassar essa linha, ao contrário do que muitos diriam depois. Comprometidos não consigo mesmos, mas com o país para o qual trabalhavam, jamais deixaram de prestar contas de seus passos aos brasileiros, explicando repetidamente o que descobriam e o que faziam. Um trabalho tão sério e bem executado que conquistou o apoio de outros países, que colaboraram com as investigações.
E o esforço foi recompensado. As provas levaram à denúncia e à condenação de inúmeros participantes do esquema, e não apenas os “peixes pequenos”, mas protagonistas da política nacional, como parlamentares, ex-governadores e um ex-presidente da República. Bilhões de reais foram devolvidos aos cofres públicos e à Petrobras. O brasileiro, que vira com desgosto a forma como os mensaleiros haviam tido penas reduzidas, inclusive sendo beneficiados com indultos, recuperou a esperança na moralização da política e no fim da impunidade que, mais cedo ou mais tarde, sempre acabava premiando os que optavam pela ladroagem.
Os responsáveis pela operação, no entanto, tinham consciência de que seu trabalho enfrentaria resistência – o exemplo que eles mesmos davam era o do fim da Operação Mãos Limpas, na Itália. Os avisos de que algo assim poderia acontecer aqui foram inúmeros. Parte da sociedade não ouviu; outra parte ouviu, mas infelizmente não conseguiu deter esse processo; e uma terceira parte, por fim, acabou colaborando, com maior ou menor consciência, da destruição da Lava Jato. A reação foi o que poderíamos chamar de “newtoniana”: na mesma intensidade e na mesma direção, mas com sentido oposto, na célebre formulação do físico inglês. Pois os adversários da Lava Jato não se contentaram em acabar com a operação; eles quiseram inverter completamente a realidade.
Ao Supremo Tribunal Federal coube a reversão de praticamente todos os resultados da operação: condenações e multas foram anuladas, competências foram redistribuídas (contrariando o que a própria corte já havia decidido, aliás), conjuntos inteiros de provas estão sendo declarados inúteis, juízes foram considerados suspeitos sem o mínimo fundamento para tal. Pouco importa se os ministros realmente julgam estar fazendo o que é certo ou se estão apenas usando argumentos frágeis para camuflar outras intenções inconfessáveis, o inegável é que o resultado de suas decisões tem sido a impunidade completa. Enquanto isso, o Congresso se encarregou de aprovar novas leis que praticamente garantem a impossibilidade de que uma operação como a Lava Jato se repita, com destaque para a Lei de Abuso de Autoridade.
Além disso, o desmonte da Lava Jato passa pela criminalização dos que investigaram e puniram a corrupção, e pela “redenção” dos ladrões, transformados em vítimas. Esta criminalização tem duas dimensões: na dimensão moral, impulsionada por um circo midiático que usou supostos diálogos de autenticidade jamais comprovada, o empenho incansável de procuradores é classificado como “messianismo” – uma afirmação que embute até mesmo um certo preconceito religioso, por aludir à fé de alguns membros da força-tarefa –, e o esforço de comunicar-se com a sociedade vira “personalismo” e “espetacularização”. Aqui temos de lamentar que mesmo brasileiros cientes do mal da corrupção tenham aderido a tais narrativas, elevando meras discordâncias sobre estratégias ao nível de irregularidade ou mesmo ilegalidade.
E isso nos leva à segunda dimensão do ataque aos responsáveis pela Lava Jato, a jurídica. Fala-se em “abusos” da operação, como se procuradores e juízes tivessem optado por combater o crime cometendo eles mesmos outros crimes, agindo ao arrepio da lei para conseguir colocar os ladrões na cadeia. Quando até procuradores-gerais da República e ministros do STF já fazem esse tipo de afirmação, abrem as portas para todo tipo de perseguição, como as movidas pelo Conselho Nacional do Ministério Público e pelo Tribunal de Contas da União, sem falar na decisão teratológica do Tribunal Superior Eleitoral que cassou o mandato do ex-procurador Deltan Dallagnol, destino que também pode acabar vitimando o senador e ex-juiz Sergio Moro. Aqueles que estiveram na cadeia graças à Lava Jato querem, agora, que seus algozes tenham o mesmo fim e não descansarão até que isso ocorra.
A Lava Jato mostrou o que um Brasil empenhado em combater a ladroagem pode fazer; manter esse legado vivo é nossa obrigação
Às vésperas deste décimo aniversário da Lava Jato, o ministro do STF Gilmar Mendes – um dos principais detratores da operação no Supremo – chegou ao ponto de falar em uma “comissão da verdade” para apurar alguns episódios ligados às investigações. Mas o fato é que a verdade toda já está aí: está em todas as provas levantadas pelos policiais e procuradores, está nas sentenças tecnicamente irretocáveis e sucessivamente confirmadas em outras instâncias até que esbarrassem no STF, está nas confissões de quem participou do esquema e nos bilhões devolvidos por quem admitiu seu papel no petrolão. Boa parte dos brasileiros sabe a verdade quando diz, em pesquisa, que a principal razão para o fim da Lava Jato foi a reação dos políticos e que o STF incentiva a corrupção ao reverter as punições aplicadas pelas instâncias inferiores do Judiciário.
Hoje a esperança pode estar soterrada, mas os responsáveis pelo desmonte da Lava Jato um dia passarão. E, quando eles perderem sua força, o desejo do brasileiro por um país sem corrupção estará pronto para ressurgir. A Lava Jato mostrou o que um Brasil empenhado em combater a ladroagem pode fazer; manter esse legado vivo é nossa obrigação.