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Deflagração da Operação Integração ll, da Lava Jato. em setembro de 2018.
Deflagração da Operação Integração ll, da Lava Jato. em setembro de 2018.| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Duas forças praticamente antagônicas se encontraram e se fundiram no Congresso Nacional nos últimos anos. A primeira, benéfica, era a das Dez Medidas Contra a Corrupção, projeto de iniciativa popular que chegou à Câmara dos Deputados com o respaldo de 2 milhões de assinaturas. Apesar de as medidas iniciais contarem com alguns pontos mais controversos, a maior parte da iniciativa era meritória, buscando reduzir a impunidade e facilitar a condução das investigações e dos processos relativos a casos de corrupção, tão comuns no Brasil. Outra força, em sentido contrário, nascera no Senado e pretendia inviabilizar o combate à ladroagem: o projeto que, sob o pretexto de combater o abuso de autoridade de magistrados e membros do Ministério Público, praticamente deixava-os de mãos atadas, à mercê da fúria de investigados e condenados.

O encontro inusitado deu-se na Câmara dos Deputados, no fim de 2016. Enquanto os parlamentares destruíam as Dez Medidas com as famosas “emendas da meia-noite”, votadas quando a sessão legislativa já avançava noite adentro, acrescentaram no projeto diversos casos que configurariam abuso de autoridade da parte de juízes e membros do MP – a bancada da impunidade até tentara emplacar a expressão “crime de responsabilidade”, mas pelo menos nisso acabou derrotada.

O que o Senado vende à sociedade como sendo a aprovação das Dez Medidas Contra a Corrupção é, na verdade, a perseguição a juízes e promotores por “abuso de autoridade”

A versão dos deputados não incluía diversas aberrações que o Senado aprovaria, meses depois, em um outro projeto, relatado pelo hoje ex-senador Roberto Requião (MDB-PR) e que contou com forte incentivo do então presidente da casa, Renan Calheiros (MDB-AL). Mas nem por isso era menos perigosa. O que o texto de Calheiros e Requião tinha de explícito, o dos deputados tinha de sorrateiro. Ao trazer uma série de expressões intencionalmente vagas, como “ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo”, “atuar com motivação político-partidária” ou “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”, a Câmara criou uma série de possibilidades de perseguição contra magistrados, procuradores e promotores. Além disso, os deputados ainda decidiram que os próprios ofendidos – ou seja, investigados, réus e condenados – poderiam processar seus investigadores e julgadores se o MP não oferecesse queixa dentro do prazo legal, o que na prática permitiria represálias contra juízes e membros do MP.

Este texto, renomeado como PLC 27/2017, dormiu nas gavetas do Senado desde o início de 2017 até março deste ano, quando Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi designado relator da proposta na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Após as denúncias do site de esquerda The Intercept Brasil, que tem publicado supostas conversas entre Sergio Moro, ex-juiz responsável pela Operação Lava Jato e atual ministro da Justiça, e o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato, o Senado viu a oportunidade para voltar à carga. O parecer foi lido em 12 de junho e será votado pela CCJ no dia 26, quarta-feira, indo a plenário no mesmo dia, de acordo com os planos dos senadores, uma "tramitação-relâmpago" que em muito lembra a do projeto de Calheiros e Requião em 2017.

A presidente da CCJ, Simone Tebet (MDB-MS), afirmou que os brasileiros poderiam ficar tranquilos, porque o texto que o Senado analisará faz várias melhorias em comparação com o que veio da Câmara. Nos artigos que tratam do abuso de autoridade, por exemplo, Pacheco incluiu trechos segundo os quais as condutas descritas só configuram crime “quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Além disso, o texto passa a afirmar que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”, afastando de vez a possibilidade do chamado “crime de hermenêutica”, que já não existia no projeto aprovado na Câmara, mas era previsto nas primeiras versões do antigo projeto de abuso de autoridade aprovado no Senado. Por fim, Pacheco ainda trouxe de volta uma das Dez Medidas originais, a chamada “ação civil de extinção de domínio”, que seria usada para recuperar bens obtidos de forma comprovadamente ilícita, ainda que seus donos não tenham sido condenados na esfera penal pela Justiça.

Leia também: A bancada da impunidade se impõe (editorial de 1.º de dezembro de 2016)

Leia também: O "abuso" e a represália (editorial de 24 de abril de 2017)

Mas essas poucas mudanças são insuficientes para conter o caráter persecutório do texto. Afinal, permaneceram no projeto as expressões vagas que podem justificar um processo contra um juiz ou membro do MP por abuso de autoridade. Além disso, Pacheco também manteve a possibilidade de o ofendido pelo suposto abuso acionar a Justiça, o que nos permite prever uma enxurrada de denúncias e processos que, mesmo infundados, tirarão tempo precioso de investigadores e julgadores, chamados a se defender daqueles que tentam colocar na cadeia por crimes de corrupção.

Em resumo, o resultado do choque entre aquelas duas forças poderosas – de um lado, a vontade popular de combater a corrupção; de outro, o desejo dos corruptos de escapar impunes e, ainda por cima, se vingar de investigadores e julgadores – está sendo a vitória dos paladinos da impunidade. Qualquer ponto positivo que o PLC 27/2017 tenha acaba eclipsado pela maneira como trata o abuso de autoridade. Se realmente quisesse uma boa lei sobre o tema, Pacheco poderia ter aproveitado o projeto original apresentado em 2017 por Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que acolheu sugestão da Procuradoria-Geral da República e de vários membros do MP, criminalizando várias condutas que realmente configuram abuso de autoridade, sem montar armadilhas para juízes e procuradores. Enquanto o PLC 27 não for votado, há tempo para correção, e algumas emendas apresentadas depois da leitura do parecer pretendem suprimir alguns dos trechos problemáticos, mas não todos. Da forma como está, o que está sendo vendido ao povo como a aprovação das Dez Medidas Contra a Corrupção vai marcar, na verdade, o início do fim do combate à corrupção.

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