Comparações entre o Brasil atual e a distopia 1984, de George Orwell, já se tornaram lugar-comum. A vigilância sobre as conversas privadas de cidadãos; as tentativas de controle da linguagem com finalidades ideológicas; as prisões e punições arbitrárias em processos sigilosos e que ignoram o devido processo legal; a vedação total à discussão de certos temas, elevados à categoria de “crimideia” – tudo isso já existe em maior ou menor grau em nosso país. No entanto, é preciso insistir na comparação, pois o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, segue empenhado em ser o Winston Smith da Operação Lava Jato.
O trabalho de Smith, o protagonista de 1984, no Ministério da Verdade é reescrever documentos históricos e publicações jornalísticas para que reflitam o pensamento do partido totalitário que governa a Oceania. Quando um antigo país aliado se tornava inimigo, por exemplo, Smith precisava encontrar e eliminar todos os registros que mencionassem a aliança, para que os registros acessíveis à população dessem a impressão de que aquele país sempre havia sido hostil à Oceania, e jamais tinha sido aliado. É exatamente o que Toffoli vem fazendo com a Lava Jato: cada decisão monocrática sua é uma tentativa de apagar o passado e substituí-lo por um revisionismo forçado que, coincidentemente ou não, segue a linha do partido hoje no poder.
A julgar pelas decisões recentes de Toffoli, o enorme esquema de corrupção montado pelo PT em conluio com empreiteiras e partidos aliados para sangrar estatais, especialmente a Petrobras, e irrigar um projeto de poder perpétuo petista nunca existiu. Provas documentais reunidas pelos órgãos de investigação ao longo de anos, confissões de empresários e políticos, bilhões de reais devolvidos por empresas que admitiram a roubalheira? Tudo isso não tem significado algum, pois no revisionismo do ex-advogado do PT alçado a ministro do STF por Lula em 2009, a Lava Jato foi apenas uma conspiração de procuradores e juízes para destruir a indústria nacional e, o mais importante, alijar o petista da disputa eleitoral de 2018, na qual ele seria o favorito.
Cada decisão monocrática de Toffoli é uma tentativa de apagar o passado e substituí-lo por um revisionismo forçado da Lava Jato que, coincidentemente ou não, segue a linha do partido hoje no poder
É assim que Toffoli pode descrever a Lava Jato como “um dos maiores erros judiciários da história do país”, uma “armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos” e “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”, como fez ao anular, em setembro de 2023, todos os atos ligados aos acordos de leniência assinados pela Odebrecht. Errava triplamente, pois antidemocrático era o esquema de corrupção – esta, sim, a verdadeira “armação” – com o objetivo de perpetuar um partido no poder, e os atos da Lava Jato, usando todo o rigor que a lei permite, e apenas o rigor que a lei permite, haviam sido devidamente confirmados em todas as instâncias do Judiciário até que o STF começasse a desmontá-los todos – este, sim, o verdadeiro “erro judiciário”. Mas o ministro não parou por aí: já durante o recente recesso do STF, cancelou uma multa de R$ 10,3 bilhões imposta à J&F, um caso que se tornou ainda mais escandaloso pelo fato de a esposa de Toffoli advogar para a empresa.
Sem ninguém que possa pará-lo, Toffoli continuou seu revisionismo e, no último dia do recesso, anulou mais uma multa, a da Odebrecht. Afirmou haver “dúvida razoável sobre o requisito da voluntariedade da requerente ao firmar o acordo de leniência” – traduzindo para o português, uma empreiteira capaz de empregar advogados de primeiríssima linha, especialistas em casos desse tipo, teria sido coagida por um grupo de procuradores do Ministério Público Federal a firmar um acordo que, ainda por cima, daria à companhia a possibilidade de não mais ter de responder a ações de improbidade e processos administrativos, sem falar da não aplicação de uma série de penalidades previstas na antiga Lei de Licitações e na Lei Anticorrupção. Acreditar na versão da chantagem é algo que exigiria uma “suspensão da descrença” digna de um espectador de um filme de ficção científica ou de super-heróis.
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E, assim como Winston Smith não apenas mudava ou anulava os fatos, mas também transformava antigos mocinhos em vilões, e vice-versa, Toffoli segue à risca os passos do personagem orwelliano. Em setembro do ano passado, já havia mandado a Advocacia-Geral da União “apurar responsabilidades não apenas na seara funcional, como também na esfera cível e criminal”, dos agentes responsáveis por investigar e julgar os corruptos e corruptores. Em janeiro deste ano, atendendo a pedido da Procuradoria-Geral da República – que, aliás, tem se esforçado bastante para não atrapalhar o supremo revisionismo –, o ministro ordenou a abertura de inquérito para investigar o ex-juiz e senador Sergio Moro. Agora, volta suas baterias contra a Transparência Internacional, ONG que elabora o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), em que o Brasil perdeu posições recentemente. A entidade criticou as decisões anteriores de Toffoli, dizendo que, graças a elas, “o Brasil se torna um cemitério de provas de crimes que geraram miséria, violência e sofrimento humano”. A investida contra a Transparência Internacional foi tão absurda que mereceu críticas da imprensa estrangeira.
Não é à toa que o Brasil esteja caindo no IPC. O brasileiro que não tem a visão turvada pelas paixões políticas sabe muito bem o que está acontecendo: os bandidos voltaram à cena do crime (como disse o atual vice-presidente da República em uma época distante), enquanto o STF vai anulando todas as condenações e demais punições impostas – sempre dentro da lei – a quem pilhou o Estado brasileiro, limpando fichas e fingindo que a roubalheira nunca existiu, zombando da moralidade e da memória do cidadão. Cabe a todos nós manter viva a verdadeira história da Lava Jato, ainda que seu legado continue a ser vilipendiado nos altos escalões da República.
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