Uma das reclamações comuns quando se trata da Justiça brasileira é sua lentidão e ineficiência. Dela nem se pode dizer com acerto que “tarda, mas não falha”, porque ela também pode falhar, e às vezes falha justamente porque tarda, como no caso das prescrições. Mas em um aspecto a Justiça brasileira é bastante eficiente: quando se trata de garantir ainda mais privilégios a uma classe que já está no topo do topo da pirâmide social brasileira, os magistrados, liderados pela cúpula do Judiciário brasileiro – os ministros do Supremo Tribunal Federal –, não perdem tempo.
Um penduricalho chamado Adicional por Tempo de Serviço (ATS), mas popularmente conhecido por “quinquênio”, já que previa reajuste de 5% nos vencimentos de todos os juízes a cada cinco anos de serviço, havia sido extinto em 2006. Tratava-se de decisão bastante razoável, por representar o fim de uma aberração sem paralelo fora do serviço público: uma gratificação sem relação alguma com eficiência ou produtividade, simplesmente por manter-se no cargo em uma carreira com estabilidade garantida, da qual só se sai por vontade própria ou pelo cometimento de alguma irregularidade muito grave. A magistratura, no entanto, não desistiu de restaurar o quinquênio: tentou fazer andar uma PEC e, sem sucesso, recorreu aos conselhos. Quando o assunto foi tratado entre iguais, tudo mudou: o Conselho da Justiça Federal (CJF) ordenou não apenas a volta do penduricalho, mas seu pagamento retroativo desde 2006, em decisão confirmada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Juízes merecem uma remuneração condizente com a importância do serviço que prestam à sociedade, e têm o direito de pleitear tal remuneração. Mas não têm o direito de recorrer a subterfúgios e filigranas jurídicas para elevar de forma imoral os seus vencimentos
O Tribunal de Contas da União (TCU), no entanto, barrou o pagamento em abril, e a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) buscou o Supremo. Em 19 de dezembro, no apagar das luzes do ano judiciário, o ministro Dias Toffoli, com uma canetada, derrubou o acórdão do TCU e, em decisão que contou com o apoio da Procuradoria-Geral da República (PGR) – compreensível, já que, em nome da isonomia, membros do Ministério Público têm os mesmos benefícios dos juízes –, ordenou o pagamento, que pode custar quase R$ 1 bilhão ao pagador de impostos brasileiro e engordar o contracheque de alguns magistrados em até R$ 1 milhão com os valores pagos retroativamente. O argumento se baseou em uma filigrana jurídica: o TCU não teria competência para suspender o pagamento, e o tema seria de regulamentação exclusiva dos conselhos.
Em resumo, o órgão cuja função constitucional é a de zelar pelo uso do dinheiro público, realizando a “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas”, não pode tocar no dinheiro dos juízes. Já os conselhos do Judiciário, incluindo o CNJ, cuja função constitucional é a de fazer o “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, incluindo “zelar pela observância do artigo 37”, pelo qual impessoalidade e moralidade são princípios que regem a administração pública, podem tomar decisões imorais e em benefício próprio, contando com a cumplicidade dos membros da principal corte do país.
Pois Toffoli está longe de ser o único a compactuar com expedientes que buscam elevar a remuneração dos juízes, muitas vezes ultrapassando o teto constitucional. Como não esquecer da quase eterna liminar de Luiz Fux que, em 2014, determinou o pagamento de auxílio-moradia a todos os magistrados, incluindo os que tinham imóvel na comarca em que atuavam? A liminar, em uma das incríveis coincidências típicas de Brasília, só foi derrubada em 2018, depois que o então presidente Michel Temer sancionou um reajuste salarial aos juízes. Neste caso, a eficiência do Supremo para garantir os privilégios à magistratura veio não da rapidez, mas da lentidão proposital, já que a liminar de Fux jamais foi levada ao plenário da corte.
A discussão a respeito do custo de medidas como a volta do quinquênio é importante no contexto atual de recursos escassos, mas não é a principal. Ainda que os cofres públicos estivessem abarrotados de dinheiro e o Brasil estivesse registrando superávits nominais seguidos, não haveria justificativa aceitável para que um único centavo fosse empregado em imoralidades e privilégios, em qualquer poder, em qualquer esfera de governo. Isso vale para fundos partidários e eleitorais, bem como para penduricalhos no contracheque de magistrados e membros do Ministério Público. Que eles e as entidades que os representam se empenhem tanto na criação ou na ressurreição desses benefícios só demonstra o tamanho do descolamento entre esta elite e a enorme maioria da população, pois só os penduricalhos dos juízes, procuradores e promotores já equivalem a um valor muito maior que o salário total de inúmeros brasileiros.
Como a Gazeta do Povo já repetiu inúmeras vezes, magistrados e membros do MP merecem uma remuneração condizente com a importância do serviço que prestam à sociedade, e têm o direito de pleitear tal remuneração. Mas não têm o direito de recorrer a subterfúgios e filigranas jurídicas para elevar de forma imoral os seus vencimentos, definindo os próprios benefícios por meio de conselhos, servindo-se da população em vez de servi-la. Agindo desta forma, desmoralizam a si mesmos e às instituições a que pertencem, mostrando o enorme abismo que há entre os donos do poder e o Brasil que trabalha dia e noite para sustentar todos eles.