Depoimentos recentes feitos a uma comissão da Câmara de Representantes (o equivalente norte-americano da Câmara dos Deputados brasileira) estão ajudando a reconstruir todas as circunstâncias que levaram à invasão do Capitólio por apoiadores do então presidente Donald Trump, em 6 de janeiro de 2021. E o quadro que está emergindo é ainda mais preocupante: se o fato de um grupo tentar interromper uma sessão do Congresso já era, por si só, demonstração de uma mentalidade antidemocrática, muito pior é saber que isso ocorreu com o conhecimento, a conivência e o estímulo de Trump.
Naquele 6 de janeiro, o Congresso se reuniria para certificar os resultados do Colégio Eleitoral, que dera 306 votos ao democrata Joe Biden e 232 a Trump. No fim da manhã, perto da Casa Branca, o presidente discursou a dezenas de milhares de apoiadores, usando frases como “nós vencemos essa eleição, e vencemos de lavada”, e “nós nunca desistiremos, nós nunca concederemos, isso não acontece, você não concede quando há roubo envolvido”. Antes mesmo que Trump tivesse terminado seu discurso, parte do público desse comício se dirigiu à sede do Legislativo norte-americano, forçando a entrada e interrompendo a sessão de certificação dos resultados, que só foi retomada à noite, quando a invasão já havia sido repelida. Cinco pessoas morreram e houve centenas de feridos, incluindo quase 140 policiais.
A pressão de Trump sobre várias autoridades, para que elas dessem credibilidade à narrativa infundada de uma enorme fraude eleitoral que tirou a reeleição do republicano, já era conhecida, mas foi reforçada em alguns dos depoimentos recentes, como os de ex-funcionários do Departamento de Justiça. Um deles, o ex-procurador-geral adjunto interino Richard Donoghue, disse ao comitê de deputados que o Departamento de Justiça encontrou, de fato, “casos isolados de fraude”, mas que “nenhum deles chegou perto de colocar em questão o resultado da eleição em qualquer estado em particular” – o que acabou confirmado por auditorias e recontagens. Mesmo juízes nomeados por Trump não viram motivo para anulação de resultados em estados onde Biden saiu vencedor.
O choro é livre, mas o uso da força não é – ou seja, em uma democracia o direito à crítica pode ser exercido de formas até bastante intensas, mas não se recorre à violência para fazer valer as próprias vontades
O comitê está descobrindo, também, que o papel real de Trump nos acontecimentos do próprio 6 de janeiro foi além do discurso incendiário. O presidente não chegou a incentivar explicitamente uma invasão do Capitólio, mas sua retórica inflamada inegavelmente construiu o clima para a invasão violenta da sede do Legislativo; além da recusa em reconhecer o resultado, Trump se referiu à certificação que ocorria no Congresso, dizendo que “vocês terão um presidente ilegítimo, isso é o que terão, e não podemos deixar isso acontecer” – não foi nada surpreendente que muitos tivessem concluído que este “não deixar isso acontecer” incluísse uma invasão do Congresso para impedir a certificação. Isso tudo também já era conhecido, mas um depoimento em particular, da ex-assessora da Casa Branca Cassidy Hutchinson, mostra que Trump foi além da incitação.
De acordo com Hutchinson, Trump sabia que alguns apoiadores tiveram armas apreendidas, e mesmo assim não quis o uso de detectores de metal antes de seu discurso na Casa Branca, dizendo não se importar que houvesse pessoas armadas, pois não era ele que estaria em perigo. Além disso, a ex-assessora afirmou ter ouvido do vice-chefe de Gabinete da Casa Branca que Trump chegou a tentar assumir o volante do veículo presidencial após o discurso, para ir ao Capitólio. Este relato específico vem sendo questionado, mas, ainda que Hutchinson estivesse equivocada neste caso – pois ela não presenciou essa atitude de Trump, fiando-se no relato de um terceiro, ao contrário dos outros episódios narrados, que ela presenciou –, isso não anularia o fato de que Trump estava ciente da possibilidade de uma tragédia e não agiu para contê-la.
A invasão do Legislativo pelos apoiadores de Trump revela um forte contraste com a reação dos perdedores de quatro anos antes. Quando Trump venceu a disputa presidencial em 2016, os democratas, a esquerda e todos os que rejeitavam a ideia de vê-lo na Casa Branca não esconderam sua frustração – pelo contrário, manifestaram-na de forma bastante veemente; jornalistas e formadores de opinião previram o apocalipse; estudantes universitários precisaram de “safe spaces” nas instituições de ensino para tentar lidar com a eleição do republicano, como se suas vidas tivessem perdido o sentido. Por mais melodramáticas e exageradas que fossem essas reações, elas não chegaram perto de uma contestação ou uma tentativa de “virar a mesa”. Tanto Barack Obama quando outros ex-presidentes democratas, como Jimmy Carter e Bill Clinton, participaram da cerimônia de posse. Em 2020, os republicanos até começaram fazendo a coisa certa, buscando a Justiça e usando as ferramentas legais para contestar resultados no Legislativo. Mas, uma vez derrotados ali, caberia reconhecer que a via institucional estava esgotada e não havia mais nada a fazer. A invasão do Capitólio, no entanto, mudou tudo e demonstrou que Trump e seus apoiadores não haviam aprendido a lição que seus adversários colocaram em prática quatro anos antes: o choro é livre, mas o uso da força não é – ou seja, em uma democracia o direito à crítica pode ser exercido de formas até bastante intensas, mas não se recorre à violência para fazer valer as próprias vontades.
De forma bastante paradoxal, os depoimentos sobre a postura antidemocrática de Trump vêm no mesmo momento em que o mundo presencia os efeitos do que talvez seja o grande legado de sua presidência: uma Suprema Corte capaz de julgar com justiça, aplicar a Constituição e defender liberdades e direitos básicos como a vida. Essa ambivalência, em que um líder enxerga com clareza a importância de alguns valores fundamentais enquanto despreza outros da mesma importância, é uma das grandes dificuldades da safra atual de governantes. Tem sido quase impossível encontrar líderes que tenham, ao mesmo tempo, plataformas corretas sobre o respeito à vida, à família e a valores como a liberdade de expressão, e um forte compromisso com a democracia; eis um dos maiores desafios do mundo atual, pois mesmo alguns poucos governantes com esse perfil em nações relevantes já seriam capazes de fazer um grande bem à comunidade global.