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editorial

Duplipensar coletivo

Diante do protesto de caminhoneiros que desejam a renúncia da presidente Dilma Rousseff, o governo reagiu mais uma vez abusando do direito de editar medidas provisórias. O texto publicado no Diário Oficial de quarta-feira, que altera o Código de Trânsito Brasileiro, só pode ser lido de uma forma: como uma retaliação ad hoc a um movimento hostil à presidente. A multa para o bloqueio de estradas subiu de R$ 1.915 para R$ 5.746; os organizadores dos bloqueios podem ter de pagar até R$ 19.154. Em alguns casos, o caminhoneiro não poderá contrair financiamento para compra de veículos por dez anos. A reação do governo – já contestada pela oposição no Congresso –, bem como a repercussão da paralisação dos caminhoneiros, é sinal de que aos poucos se está perdendo a capacidade de avaliar as ações pelo que elas realmente representam; o critério de certo e errado passou a ser pessoal: a filiação ideológica daqueles que agem e daqueles que são prejudicados pelos atos. Assim, uma mesmíssima modalidade de protesto é considerada defensável ou ilegítima dependendo única e exclusivamente de quem são os participantes e de quem são os alvos – é praticamente a aplicação do duplipensamento consagrado por George Orwell em 1984.

Por mais que discordemos dos métodos do movimento dos caminhoneiros – como explicamos no editorial de quarta-feira, dia 11 –, é inegável que o mesmo governo que emprega a mão pesada contra eles age de forma muito diferente quando as estradas são bloqueadas por grupos aliados ao petismo, como o Movimento dos Sem-Terra, ou minorias que contam com a simpatia do Planalto. A manchete de um site humorístico de notícias fictícias segundo a qual “para terem direito de protestar em rodovias, caminhoneiros se disfarçam de MST” nada mais é que a aplicação perfeita do adágio latino Ridendo castigat mores: por meio do humor, escancaram-se os maus hábitos – no caso, os maus hábitos de um governo que só aplica a lei quando se trata de seus adversários, não de seus aliados. O empenho que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, coloca contra os caminhoneiros que bloqueiam estradas jamais é visto em situações idênticas nas quais é o MST, ou qualquer outro dos “movimentos sociais”, a agir da mesma forma. Pelo contrário: tais movimentos são repetidamente prestigiados pelo governo, mesmo quando levam a baderna às portas do Palácio do Planalto, como ocorreu em fevereiro de 2014.

Avaliar a moralidade de uma ação pelo único critério das pessoas envolvidas, e não pela ação em si, é um caminho não só incoerente, mas também perigoso

O mesmo duplipensamento é aplicado pelos aliados do governo, tenham ou não atuação pública. É por isso que políticos, militantes e simpatizantes do petismo veem com bons olhos a repressão aos bloqueios dos caminhoneiros, mas defendem bloqueios idênticos quando realizados pelos “movimentos sociais”. É por isso que as mesmas pessoas que em 1992 participaram do “fora Collor” e também gritaram “fora FHC” qualificam como “golpistas” os que agora pedem o impeachment da presidente Dilma. Nos três casos, trata-se do recurso ao mesmíssimo instrumento constitucional (e, no caso de Dilma, os motivos para tal parecem ser ainda mais evidentes que nos casos de Collor e FHC); por que, em dois deles, a ação era plenamente justificável, mas no caso mais recente trata-se de “golpe” ou “atentado à democracia”?

Mas a falta de coerência não se observa apenas no governo e entre os que o apoiam. Exemplo disso está na maneira como muitos que são contrários a Dilma e pedem seu impeachment reagiram à paralisação dos caminhoneiros, apoiando entusiasticamente um movimento que recusa negociação, tenta forçar uma renúncia presidencial e viola o direito alheio de ir e vir. Se a mesmíssima ação fosse articulada pelo MST, essas pessoas estariam clamando pela restauração da lei e da ordem; mas, como o objetivo é atingir Dilma, de repente essa atitude se torna justificada e até mesmo elogiável.

Como se vê, avaliar a moralidade de uma ação pelo único critério das pessoas envolvidas, e não pela ação em si, é um caminho não apenas incoerente, mas até mesmo perigoso: quem hoje elogia e incentiva um movimento apenas por ser feito pelos “nossos” contra os “deles” pode estar do outro lado desta equação num futuro muito próximo e não terá autoridade moral para reclamar. Essa autoridade moral só vem quando há a capacidade de analisar as atitudes pelo que elas realmente são, e restaurar essa capacidade é essencial se queremos tirar o país do atoleiro moral em que foi colocado justamente pelos que relativizam as piores atitudes quando cometidas pelos companheiros de grupo ou ideologia.

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