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editorial

É o fundo do poço?

O surto de gripe suína deixou uma lição simples como o quê. Entendeu-se que práticas comuns, ao alcance de todos, tinham o poder de evitar a pandemia. Havia um manual a ser seguido. A palavra de ordem era voltar às recomendações de saúde pública, outrora ensinadas no grupo escolar – lavar as mãos antes das refeições e manter os espaços arejados, por exemplo. Pode-se dizer que, a duras penas, a tragédia tirou a poeira de velhos hábitos. E instaurou um novo – álcool gel guardado nas bolsas.

Nas devidas proporções, a crise da água parece ter efeito semelhante. A sociedade se vê de novo em meio às "lições da pedra", tendo de se virar com o que saiu do controle. Há décadas se ouve falar da finitude dos recursos hídricos e de como mantê-los. Ainda que penoso, não é nenhum bicho de sete cabeças. Há como economizar no banho, na escovação dos dentes, na lavação das calçadas; que condomínios não vão gastar fábulas para encher reservatórios com água da chuva. Mesmo assim, o desperdício está nas nossas contas, não é de hoje, naturalizado como se fosse uma fatalidade. A perspectiva de que em breve – a exemplo do que ocorre no estado de São Paulo – vamos viver às voltas com racionamentos, contudo, faz-nos voltar às coisas simples da vida. Terá de haver um esforço coletivo, agora.

Infelizmente, no Brasil ainda se estuda pouco a história da perspectiva das doenças, da saúde pública e dos hábitos de higiene. Mal não faria retomar esse tema, tirando-o da sombra dos onipresentes discursos políticos e econômicos. Vale citar como exemplo o esplêndido Carne e Pedra – o corpo e a cidade na civilização ocidental, do sociólogo norte-americano Richard Sennett. O livro costura, entre outros, vida pública, crenças médicas e percepção do espaço, de modo a mostrar o que tendemos a ignorar: respiramos o mesmo ar, tomamos a mesma água, de manhã à noite trabalhamos pela preservação do nosso corpo, um instinto que interfere no mundo ao nosso redor.

É senso comum que os hábitos de higiene dos brasileiros foram marcados pelos indígenas – descritos como asseados já na carta de Caminha. Mas é provável que a determinância maior tenha sido a sobra espetacular de água para ser gasta, sem culpa, como se estivéssemos num paraíso. Diferentemente dos norte-americanos, cujos hábitos de higiene viraram uma indústria, pouco sabemos sobre as razões culturais do nosso gosto por torneiras incontinentes. O que sabemos é que virá uma batalha pela frente – uma guerra da água.

Não temos mais como procrastinar a discussão. O uso da água é um problema que está aí para ser enfrentado, como uma questão social tão importante quanto a violência ou a convivência nas grandes cidades. Se não a entendermos do ponto de vista do imaginário, será difícil. A começar pelo fato de que na cabeça do brasileiro economizar água vai ter de deixar de significar "economizar para si" para significar "economizar para o outro". Nosso individualismo crônico e disfarçado está prestes a ser cutucado, e salve-se quem puder.

É fato que o problema da água não se resume aos desmazelos do consumidor individual. A propósito, o banho, a louça e a calçada – é de consenso – não são uma catarata jogada fora, como se quer acreditar. Dados recentes do Departamento Autônomo de Água e Esgotos (DAAE) do estado de São Paulo apontam que o setor industrial utiliza 40% da água disponível para abastecimento – captada em rios, poços e reservatórios da Grande São Paulo. Mais: 25% da água tratada se perde antes de chegar às torneiras, um número que dá contas do absurdo em que nos metemos. Só há uma saída: implantar políticas de incentivo para que dona Maria – às voltas com as roupas para lavar – e o doutor João, com sua indústria, se disponham a gastar menos. O mito da água abundante, das chuvas generosas, é confortável demais, mas é preciso mudar comportamentos.

A mesa de propostas está aberta. E são boas – o hidrologista Benedito Braga, da USP e membro do Conselho Mundial da Água, defende um cálculo de gasto razoável por família e taxas extras para quem se exceder. O mesmo poderia ser aplicado às empresas gastadeiras – é preciso que sintam, no bolso, que a água no Brasil é barata demais. Poderia ser um bom começo. Não faltam espelhos em que se mirar: de acordo com a ONU, 13 países do mundo vivem na base do conta-gotas e da canequinha, ou no fundo do poço, como se diz. Na China, 400 cidades estão às voltas com problemas de abastecimento. A galeria de soluções, no entanto, é notável. Os chineses optaram pela transposição de rios. Os australianos, pela dessalinização. Os norte-americanos, pela proteção a mananciais. Os espanhóis, por grandes campanhas. A lista é longa, passa pela reforma de encanamentos. E pela voz – temos de falar sobre isso.

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