Uma das bandeiras do ex-presidente Lula era a campanha da fome. Impossível esquecer. A imagem de famélicos, singrando a caatinga, quais personagens de Graciliano Ramos ou pinturas de Portinari, rendeu muito palanque nos idos da década. Eleito, Lula foi à luta para cumprir suas promessas de pôr comida à mesa da brava gente brasileira. Não por menos, estrilou quando quem entende do riscado lhe informou que o brasileiro andava até meio gordinho. E que o problema era muito mais de cultura alimentar e saúde pública do que de ter o que comer.
Como o Bolsa Família vingou e se tornou um dos trunfos da era petista, aqueles pratos vazios estampados nos outdoors caíram no esquecimento ou no anedotário dos mais venenosos que, como se sabe, brotam em cachos. Afinal, não é assunto com o qual se faça troça. Lula se consagrou na redução da pobreza e a turma do poder entendeu que onde se lia fome melhor seria dizer miséria, uma palavra dotada tanto de amplitude quanto de realidade. Eis o ponto em que estamos.
A presidente Dilma Rousseff sabe bem onde está. Seu programa "Brasil sem Miséria" não nasceu embalado pelas hordas da emoção. Nos palanques, falou na erradicação da miséria de 19,6 milhões de brasileiros, já com informações o bastante sobre o assunto, bebidas nas fontes do Ipea. A então candidata tomou todos os cuidados para não cair nas arapucas em que se meteram seus antecessores Lula e FHC. Se aos dois era difícil entender a nova geografia da fome para cunhar a expressão de Josué de Castro que dirá fixar um teto mínimo para a definição do que seja a miséria. É quem ganha R$ 150, R$ 200? Nessa matéria, sempre se primou pela falta de um acordo.
Pois Dilma matou a pau. Miserável é quem ganha até R$ 70. E lá está ela, crivada de balas, pois o valor, com perdão ao trocadilho, é considerado miserável e aquém do que havia prometido antes de se eleger. Mas não se pode tirar os méritos da presidente, pois liberou o assunto do campo da conversa mole. Como escreveu o economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas (FGV), Dilma fez em 100 dias o que os homens de terno ensebaram por mais de 20 anos, mexendo com os nervos e com os juízos de quem planeja a divisão de riqueza.
O valor de R$ 70 por mês de fato causa labirintos só de imaginar. Difícil alguém consumir o equivalente a 2,5 mil calorias diárias com essa quirera. Precisa mesmo da caridade de estranhos e a caridade, ainda não devidamente quantificada, engorda e remenda o país, não é de hoje. Não se sabe como nem o quanto da miséria carregam nas costas os religiosos, ongueiros e demais homens e mulheres de boa vontade. Esse é um outro assunto que deveria ocupar nossas mesas debate daqui para frente a indústria formal e informal de assistência social.
Do ponto de vista de políticas públicas econômicas, no entanto, a indefinição crônica sobre onde terminava a miséria e começava a pobreza era um estorvo, pois inibia orçamentos e fazia dos expedientes de transferência de renda o verdadeiro jogo das contas de vidro. Agora ficou um pouco mais confortável. Um pouco. Festejemos.
O valor adotado é um bocadinho maior do que o previsto pelo Banco Mundial na casa do US$ 1,25 por dia, algo como R$ 60. Mas os "setentão" são uma presa fácil para a inflação e tem uma vocação nata para virar poeira. Para quem ganha no almoço para comer no jantar, a alta de alimentos, na casa dos 8% no último ano, é, literalmente, um soco no estômago. Por ironia, se continuar assim, vai ser preciso reeditar a campanha da fome, fazendo o Lula se sentir vingado lá na cobertura de São Bernardo.