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Editorial

Eleições, aborto e o ataque à liberdade religiosa no México

Carlos Aguiar Retes, cardeal-arcebispo da Cidade do México
Carlos Aguiar Retes, cardeal-arcebispo da Cidade do México, em foto de 2018: ele foi um dos cinco líderes católicos condenados pela Justiça Eleitoral mexicana. (Foto: Sáshenka Gutiérrez/EFE)

Um líder religioso pode ser condenado judicialmente por orientar os fiéis de sua religião a votar de acordo com certos princípios caros à sua fé? Por mais absurda que essa ideia seja, é o que acaba de ocorrer no México: a Justiça do país condenou os cardeais Carlos Aguiar Retes (arcebispo da Cidade do México) e Juan Sandoval Íñiguez (arcebispo emérito de Guadalajara); o bispo Pedro Pablo Elizondo Cárdenas, da diocese de Cancún-Chetumal; e os padres Mario Ángel Flores Ramos e Ángel Espinosa de los Monteros Gómez Haro. Seu “crime”? Usar as mídias sociais para afirmar que os católicos não deveriam votar em candidatos e partidos defensores do aborto e da ideologia de gênero nas eleições de junho deste ano, em que foram escolhidos governadores, parlamentares em nível federal e estadual, e cargos em nível municipal.

O México é um caso bastante peculiar, de um país cuja população é extremamente religiosa, mas cujo governo não é apenas neutro em relação à fé: o ordenamento jurídico-institucional mexicano é claramente antirreligioso. Uma Constituição que praticamente reprimia a fé católica – proibindo, por exemplo, qualquer manifestação pública de religiosidade fora das igrejas – fora aprovada em 1917 (vigorando até hoje, embora emendada), e a perseguição resultante levou os católicos a reagir pegando em armas, na chamada “guerra cristera”. As hostilidades abertas cessaram, mas a aversão do Estado mexicano à Igreja permaneceu. Em sua biografia do papa João Paulo II, os jornalistas Carl Bernstein e Marco Politi narram a primeira viagem daquele pontificado, justamente ao México, no fim de 1978. O presidente José López Portillo e sua mulher receberam o papa no aeroporto vestidos como cidadãos comuns, trataram-no pelo genérico “señor”, dirigiram-lhe algumas poucas palavras, deram-lhe as costas e foram embora.

Não há razoabilidade alguma em pretender negar a instituições e líderes religiosos o direito de bem aconselhar seus fiéis quando o voto também tem efeito sobre temas caros às confissões religiosas

No entanto, mesmo para um país cuja lei impõe uma série de restrições às confissões religiosas, a condenação extrapola o que diz a Constituição de 1917 em seu artigo 130.e: “Os ministros não poderão (...) realizar proselitismo a favor ou contra candidato, partido ou associação política alguma; Tampouco poderão, em reunião pública, atos de culto ou de propaganda religiosa, nem em publicações de caráter religioso, opor-se às leis do país ou a suas instituições”. Não houve, nas manifestações dos sacerdotes e bispos, menção a “candidato, partido ou associação política alguma”: o mais próximo disso foi a exortação do cardeal Íñiguez a não votar nos que “estão no poder” e a afirmação de que “este governo adotou a ideologia de gênero”, enquanto os demais condenados se limitaram a recomendações mais genéricas, afirmando que os católicos deveriam votar em quem defendesse a vida e a família, e não nos defensores do direito ao aborto e da ideologia de gênero. Os que “estão no poder”, no caso mexicano, são o presidente Andrés López Obrador e seu partido, o esquerdista Movimento de Regeneração Nacional (Morena). O partido foi o autor da ação contra os cinco líderes católicos, mas retirou as queixas – a corte eleitoral mexicana decidiu seguir com o processo por conta própria.

O que está em jogo, aqui, é a compreensão do alcance da liberdade religiosa, combinada com a liberdade de expressão, e o papel das religiões na sociedade. Ninguém julga ser absurdo que entidades da sociedade civil, como sindicatos e associações de classe, tomem posição em período eleitoral, orientando seus membros e simpatizantes a respeito de temas que lhes são caros – muitos deles, inclusive, apoiam explicitamente partidos e candidatos. Não há razoabilidade alguma em pretender negar a instituições e líderes religiosos o direito de bem aconselhar seus fiéis neste sentido. No caso específico da Igreja Católica, o papa Bento XVI, em discurso aos bispos do Maranhão, em outubro de 2010, foi bastante claro: “Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas (...) em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum”. Os padres e bispos mexicanos nada mais fizeram que colocar em prática as recomendações do hoje papa emérito.

Também carece de fundamento a alegação da corte segundo a qual os padres e bispos não poderiam se manifestar porque “têm grande influência sobre os que professam a fé católica”. Além de o mesmo também poder ser dito a respeito de outros tipos de líderes civis, e até de celebridades ou “influenciadores”, sem que ninguém queira tirar-lhes a voz, trata-se de raciocínio que, na prática, descarta a liberdade individual dos fiéis, que votam de acordo com os ditames de sua consciência e são, inclusive, livres para aderir à fé que preferirem (ou a fé nenhuma). O argumento, além de extremamente paternalista, no caso concreto mexicano talvez nem tenha base na realidade, já que o Morena saiu vencedor do pleito para o Legislativo federal.

Alguém haverá de argumentar que o absurdo mexicano não deveria preocupar os brasileiros, já que o modelo de laicidade colaborativa estabelecido na Constituição Federal de 1988 em nada lembra o anticlericalismo oficial mexicano. No entanto, ecos da mentalidade que embasou a construção do laicismo mexicano já podem ser vistos por aqui. O caso mais emblemático foi a tentativa de se instituir, por via judicial (o que já é suficientemente preocupante por usurpar prerrogativa do Poder Legislativo), o crime eleitoral de “abuso de poder religioso”. Em julgamento realizado no TSE em meados de 2020, o Ministério Público Eleitoral e o relator Edson Fachin felizmente ficaram sozinhos na defesa da tese. Mas o fato de argumentos semelhantes aos usados no México já serem empregados aqui para se tentar colocar uma mordaça apenas sobre os líderes religiosos, enquanto todos os demais seguem livres (como deve ser, fique bem claro) para se posicionar politicamente, serve de alerta para que a sociedade se mantenha vigilante contra novos ataques à liberdade religiosa no Brasil.

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