Pela primeira vez desde a redemocratização do Chile, com o fim da ditadura de Augusto Pinochet, o país terá de escolher um governante que tende mais para os extremos que para o centro. O eleitor rejeitou os grupos políticos tanto do atual presidente, Sebastián Piñera, de centro-direita, quanto da ex-presidente socialista Michelle Bachelet – a dupla se alternou no governo do Chile ao longo dos últimos 15 anos –, e levou ao segundo turno o conservador José Antonio Kast e o esquerdista Gabriel Boric, em disputa que será resolvida em 19 de dezembro.
Parte importante da estabilidade chilena nas últimas três décadas vem do crescimento econômico proporcionado por um modelo mais liberal, herdado do regime ditatorial de Pinochet. O Chile é o único país sul-americano membro da OCDE e lidera a região em rankings de liberdade econômica e facilidade para se fazer negócios, mas o liberalismo aplicado no país não foi capaz de eliminar totalmente a pobreza ou de amenizar a desigualdade social, e tem havido um descontentamento crescente com o que é visto como uma presença insuficiente do Estado no auxílio aos mais pobres nas áreas de saúde, educação e previdência.
O resultado do segundo turno será, também, um indicador do ânimo popular em relação à nova Constituição chilena, que está sendo redigida e terá de ser aprovada em referendo para entrar em vigor
Essa insatisfação culminou nos enormes protestos de rua de 2019, que tiveram como estopim um reajuste nos preços do transporte coletivo em Santiago nos horários de pico. As manifestações começaram pacíficas, mas logo caíram na violência e no vandalismo. A pandemia de Covid-19 freou os protestos, mas não conteve a crescente polarização, que o coronavírus apenas intensificou ao trazer à tona outros tipos de discordâncias, desta vez sobre as medidas de contenção necessárias para vencer a pandemia. O PIB chileno caiu 5,8% em 2020, mas as estimativas para 2021 são bastante animadoras, com previsão de crescimento na casa dos 10%.
Entre os candidatos derrotados, aqueles de centro-direita e direita tiveram desempenho melhor que os da centro-esquerda e esquerda; por este ângulo, a direita larga na frente para o segundo turno. No entanto, os apoios para a sequência da disputa mal começaram a ser costurados, com algumas poucas declarações públicas até o momento; Kast e Boric terão de fazer concessões para conquistar o endosso dos candidatos que ficaram para trás, caso não queiram apostar em um “concurso de rejeição”, desprezando apoios por contar com os votos daqueles que simplesmente não desejam que o outro lado vença. A negociação com as outras forças políticas será ainda mais necessária porque tanto Kast quanto Boric não foram capazes de eleger muitos parlamentares de suas siglas na Câmara e no Senado chilenos, que continuarão dominados pelas legendas e coalizões mais ao centro.
O resultado do segundo turno será, também, um indicador do ânimo popular em relação à nova Constituição, que está sendo redigida e terá de ser aprovada em referendo para entrar em vigor. Em resposta aos protestos de 2019, Piñera havia buscado acalmar os ânimos prometendo um plebiscito sobre a redação de uma nova Constituição para o país, em substituição ao texto pinochetista bastante emendado. Em outubro de 2020, já durante a pandemia de Covid-19, grande maioria dos chilenos disse “sim” a uma nova Carta Magna, e em maio deste ano a Assembleia Constituinte foi eleita.
Um texto que destoe muito da plataforma política do novo presidente pode correr sério risco de acabar rejeitado na consulta popular. A Assembleia Constituinte tem maioria mais à esquerda, com propostas de transformar radicalmente o Estado chileno: em vez de aperfeiçoar o liberalismo, deixando-o mais atento aos pobres, o país se tornaria um Estado de bem-estar social, o que está em linha com as promessas de campanha de Boric. Uma eventual vitória de Kast, no entanto, seria um sinal de que os chilenos não endossariam uma guinada tão severa, mantendo a possibilidade de que o Chile continue a ser exemplo de liberdade econômica e de pouca interferência estatal na vida do cidadão, mas que ao mesmo tempo ataque de forma mais contundente a pobreza e a desigualdade, sem cair no caminho de populismo e gastança que tem sido a ruína de tantos de seus vizinhos latino-americanos.
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