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Quando o peronismo saiu derrotado das primárias eleitorais de setembro – uma espécie de “prévia” em que os eleitores decidem quem terá o direito de disputar as eleições propriamente ditas –, o governo esquerdista de Alberto Fernández entrou em uma espiral de autofagia. A vice-presidente Cristina Kirchner fez duras críticas à política econômica de Fernández e seu grupo deflagrou uma rebelião interna em que saiu vencedor, forçando uma série de mudanças no ministério e no alto escalão do governo. Para esta ala do peronismo, os “erros” aos quais o presidente se referiu ao comentar o resultado das primárias eram o de não levar a Argentina ainda mais para a esquerda.
Desde então, Fernández investiu em mais intervencionismo e anunciou um novo congelamento de preços, o que não impediu a inflação de avançar mais 3,5% em outubro, chegando a para 41,8% no ano e levando o acumulado de 12 meses para 52,1%. Foi neste contexto que os argentinos renovaram um terço do Senado e quase metade da Câmara de Deputados neste domingo, e os resultados deixaram claro que não era mais esquerdismo que o eleitor desejava quando, em setembro, havia imposto uma derrota aos peronistas.
Fernández e os peronistas podem seguir falando em “vitória”, mas nenhum discurso anula o fato de que o eleitor rejeitou as políticas econômicas intervencionistas do kirchnerismo
Pela primeira vez desde a redemocratização da Argentina, em 1983, o peronismo, representado pela coalizão Frente de Todos, perdeu a maioria no Senado. O governo, que tinha 40 das 72 cadeiras, agora terá 35, insuficientes para aprovar projetos sem depender de acordos com a oposição. Mesmo assim, Fernández ainda encontrou o que comemorar, porque a derrota que se anunciava era ainda maior. Na Câmara, onde o peronismo já não era maioria, a Frente de Todos acabou perdendo apenas dois deputados – terá 118 dos 257 lugares e continua sendo a principal força na casa legislativa. A sobrevida do governo veio especialmente de três províncias: Chaco, Terra do Fogo e Buenos Aires – que, apesar do nome, não inclui a capital propriamente dita (onde o Juntos por el Cambio, principal grupo oposicionista, saiu vencedor), mas as cidades do entorno.
“Espero vocês na quarta-feira na Praça de Maio para celebrar esta vitória”, anunciou Fernández, como se realmente houvesse triunfado em algo, quando na verdade sua “vitória” mais se parece com o fato de ter perdido pelo placar mínimo em vez de ser goleado – seu primeiro pronunciamento após o fechamento das urnas, aliás, nem mencionava os resultados, limitando-se a anúncios de ordem econômica, incluindo um projeto de lei que contemplará recentes negociações do governo com o FMI e que, segundo informações de bastidores, saiu mais ao gosto deste que daquele. Na prática, o presidente terá de dialogar com a oposição, à qual já estendeu a mão logo após o anúncio dos resultados. Um “não” Fernández já recebeu: o dos liberais e libertários da frente formada pelos partidos Avanza Libertad e La Libertad Avanza (que têm nomes semelhantes, mas atuação em áreas distintas do país), liderados pelos economistas Javier Milei e José Espert, que se tornaram a terceira força eleitoral na cidade de Buenos Aires e farão sua estreia na Câmara já com cinco deputados.
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Fernández e os peronistas podem seguir falando em “vitória”, mas nenhum discurso anula o fato de que o eleitor rejeitou as políticas econômicas intervencionistas do kirchnerismo, que apenas aprofundaram uma crise duradoura, agravada pela pandemia de Covid-19, à qual o governo respondeu com lockdowns que figuraram entre os mais longos do mundo. O antecessor de Fernández, Mauricio Macri, decepcionou ao não promover reformas na intensidade necessária para tirar a Argentina do caminho populista, e a continuação da crise custou sua reeleição. Mas terá a população argentina percebido que se enganou ao devolver o poder à esquerda em 2019, acreditando que ela faria algo diferente da destruição dos mandatos de Néstor e Cristina Kirchner?