Na semana passada, o ministro do STF Nunes Marques atendeu a um pedido da Advocacia-Geral da União e da Eletrobras, ampliando em mais 90 dias o prazo para uma negociação a respeito do poder de voto que o governo federal deve ter na empresa de energia, privatizada em 2022, último ano do mandato de Jair Bolsonaro. Esta é a terceira prorrogação de prazo – as outras ocorreram em abril e agosto – para que as partes cheguem a um entendimento na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF). O ministro alega que o objetivo das negociações é “promover a segurança jurídica e o interesse público” – mas, a julgar pela pretensão dos envolvidos, ou ao menos da maioria deles, segurança jurídica e interesse público provavelmente serão os grandes derrotados.
O centro da disputa é a insatisfação do presidente Lula com o modelo usado na privatização: o de corporation, em que nenhum acionista tem mais de 10% dos votos, independentemente da quantidade de papéis que detenha – no caso da Eletrobras, a União tem 42% das ações ordinárias. Sempre fiel à ideia de que absolutamente tudo no Brasil tem de funcionar conforme a vontade presidencial, Lula questionou no STF este trecho da lei que permitiu a privatização, e Nunes Marques, então, remeteu a disputa à CCAF, em vez de deixar que o STF fizesse a coisa certa: julgasse o caso e fizesse prevalecer o que os congressistas decidiram ao aprovar a lei.
Com sua decisão de enviar o pedido do governo para conciliação, em vez de mandar cumprir a lei, Nunes Marques coloca em risco todas as vantagens que o modelo de corporation traria à Eletrobras
O modelo de corporation, afinal, nada tem de inconstitucional ou “desproporcional”, como alega o governo. Pelo contrário: ele é um dos melhores meios de garantir boa governança em empresas, especialmente aquelas que já estiveram nas mãos do Estado, ao blindá-las de interferências políticas excessivas. E é exatamente de interferência que estamos falando, pois o próprio Lula expressa sua contrariedade nesses termos, referindo-se a outra ex-estatal transformada em corporation: “A Vale antes tinha uma diretoria, eu sabia quem era o presidente. Hoje não tem dono, é uma tal de corporation com gente que tem 2%, 3%, como cachorro de muito dono, que morre de fome, de sede”.
É óbvio que Lula sabe quem é o presidente da Vale; sua queixa é outra, a de não poder decidir quem preside a Vale. E os resultados da mineradora, bem como o de outras ex-estatais privatizadas, como Embraer e CSN, mostram que essas empresas não são “cachorros que morrem de fome”, mas exemplos de sucesso deste modelo, no qual a gestão existe para buscar o crescimento da empresa, e não para obedecer às convicções do governante de turno. Os verdadeiros “cachorros mortos de fome” do Brasil são as estatais dependentes, que não geram receita suficiente para arcar com as próprias despesas e engolirão só neste ano R$ 27 bilhões do governo, o “dono” cuja identidade todos conhecem.
Com sua decisão de enviar o pedido do governo a uma câmara de conciliação, no entanto, o ministro Nunes Marques coloca em risco todas as vantagens que o modelo de corporation traria à Eletrobras, pois qualquer solução que satisfaça os interesses de Lula resultará no retorno – ainda que não na mesma intensidade dos tempos da Eletrobras estatal – da ingerência política e, o que é ainda mais grave, no descumprimento de uma lei debatida e aprovada pelos representantes do povo. A conciliação é uma ferramenta para resolver controvérsias e disputas, não para encontrar meios de burlar a legislação como deseja o governo, com a complacência de um ministro do STF omisso em seu dever de fazer valer a lei.
É por isso que qualquer vitória do governo representará o oposto do que Nunes Marques diz desejar. Não haverá segurança jurídica, pois qualquer lei aprovada no Congresso agora poderá ser ignorada ou até desfeita sem grandes esforços, o que por sua vez será fatal para a atração de investimentos – afinal, boa parte do interesse nas ações da Eletrobras quando ocorreu a capitalização derivou da confiança dos investidores no fim da interferência governamental na empresa. E não haverá respeito ao interesse público, pois o que o brasileiro espera é um serviço de qualidade, que por sua vez é resultado de gestão profissional, voltada aos resultados, e não da ingerência do governo sobre os rumos da companhia. Tudo isso, repita-se, poderia facilmente ser evitado se houvesse uma mínima disposição de defender a lei.
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