Desde o século 19, as C onstituições brasileiras invariavelmente definiram como de propriedade da União todas as terras situadas na fronteira com países vizinhos. Criou-se, assim, a chamada Faixa de Fronteira, com largura de 150 quilômetros em toda a sua extensão. Não se poderia, nunca, conceder tais terras a particulares para que colonizassem o território? Sim, isso nunca foi proibido, mesmo porque a ocupação por brasileiros seria um reforço a mais para dar sentido ao espírito da disposição constitucional qual seja o de, estrategicamente, preservar a integridade territorial do nosso país e protegê-la da cobiça estrangeira. Uma só condição era exigida daqueles que se dispusessem a explorar o largo e inóspito território que as concessões fossem feitas exclusivamente pela União após expressa autorização do Conselho de Segurança Nacional (CSN).
Entretanto, no Paraná conforme historiou ontem este jornal em sua principal manchete o governador Moysés Lupion, durante seus dois mandatos (1947-1951 e 1956-1960), ao arrepio das disposições constitucionais, distribuiu terras situadas na Faixa que, frise-se novamente, não pertenciam ao estado, mas à União. Foram beneficiários das doações dois grupos distintos: de um lado, empresas colonizadoras; de outro, apaniguados do governador, amigos e correligionários políticos. O primeiro grupo logo executou projetos de loteamento das áreas, vendendo as subdivisões a pequenos proprietários, aos quais foram concedidos títulos de propriedade. Quanto ao segundo grupo, as gerações que sucederam os beneficiários originais procederam, em grande parte, da mesma forma, isto é, lotearam e venderam, não sem antes expulsar à bala os posseiros que já as ocupavam.
Para o bem ou para mal, operou-se ali naquela faixa, principalmente a partir da década de 70, um processo de colonização e de exploração agropecuária de grande vulto. A fertilidade da terra e as mãos de famílias simples de agricultores que para lá foram atraídas fizeram da região o que é hoje uma das mais prósperas e ricas do país. Cidades nasceram e cresceram, comércio e indústrias se instalaram, governos investiram na infraestrutura de estradas e energia para dar suporte à sua crescente e complexa dinâmica econômica. Esse é o Oeste do Paraná hoje responsável por cerca de 20% do PIB estadual e um quarto da nossa produção agropecuária, estimada em 2008 em cerca de R$ 48 bilhões.
Coloca-se em dúvida a legitimidade das propriedades agrícolas. Havia dúvidas sobre a legalidade dos títulos? Sim. Por isso, na década de 70, o governo federal, diante do fato consumado, decidiu que deveria regularizar a situação, quer ratificando os títulos sobre os quais não pairassem dúvidas caso das áreas oriundas do processo de colonização executado por empresas autorizadas quer desapropriando as demais não cobertas por processos legais, como era o caso daquelas originalmente distribuídas a apaniguados do ex-governador.
Duas realidades, portanto. Quanto à primeira, iniciou-se o processo de ratificação, já há 30 anos ou mais. Mas a lentidão da burocracia estatal e a exiguidade dos recursos humanos e técnicos do Incra impediram que se concluísse esse trabalho. Há cerca de 40 mil pequenos imóveis rurais ainda pendentes da ratificação dos seus títulos e não há perspectivas a curto ou médio prazo de solução para elas. Quanto à segunda, cujas desapropriações foram decretadas e em seguida contestadas judicialmente, é que pesa o cálculo de que seriam necessários R$ 20 bilhões para a União complementar a indenização. Embora tenham sofrido intensa subdivisão, as que se encontram sub judice correspondem a cerca de, apenas, 40 ou 50 grandes áreas.
Há duas saídas: ou se paga aos atuais detentores das áreas desapropriadas a indenização justa e em dinheiro, como preceitua a Constituição ou se regulariza a sua titulação. O que não se pode é politizar esta questão, como querem os movimentos sociais que dizem lutar pela reforma agrária. Há muito suor derramado que gerou direitos adquiridos e que precisam ser respeitados em nome da segurança jurídica e da paz social que não podem ser submetidos ao "terrorismo" patrocinado pelo Incra para influenciar o Judiciário a não dar ganho de causa aos atingidos pelas desapropriações, sob o argumento de que tal fato "quebraria" o erário.