Quando a pandemia do coronavírus mostrou sua gravidade em meados de março passado e, em abril, o país já estava praticamente parado, mantendo apenas atividades essenciais à sobrevivência da população, o Congresso Nacional reagiu e aprovou a Emenda Constitucional 106/2020 em 7 de maio, da qual nasceu a expressão “orçamento de guerra”. Não era uma guerra convencional entre exércitos de homens uns contra os outros, mas uma guerra contra um inimigo invisível, letal e praticamente desconhecido: o vírus e sua alta capacidade de transmissão. Assim, foi aprovado um regime orçamentário e fiscal extraordinário autorizando o governo a gastar e aumentar o déficit com medidas de enfrentamento da crise sanitária e, principalmente, socorrer milhões de brasileiros que perderam o emprego ou tiveram sua renda parcialmente reduzida.
O governo ganhou liberdade para tomar medidas como contratação simplificada de pessoal, contratação de obras e compra de bens e serviços necessários às ações de combate à pandemia, bem como liberdade para estourar gastos além dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. No campo monetário, o Banco Central ganhou autonomia para executar várias operações com moeda e títulos. Em síntese, foram abandonados os limites legais para gastos do governo e abandou-se também a velha premissa de que não se deve expandir a moeda circulante sem o correspondente aumento na produção nacional. Queda de produção de um lado, em função da recessão derivada da paradeira na economia; e emissão de moeda de outro lado, para socorrer pessoas, estados e municípios, acabaram reacendendo debates teóricos sobre os efeitos da emissão de dinheiro, sobretudo a possibilidade de provocar inflação e todos seus efeitos danosos sobre o padrão de vida da população.
De um lado estão os chamados “keynesianos”, adeptos da linha teórica elaborada pelo economista John Maynard Keynes (1883-1946), que, diante da Depressão dos anos 1930, criou uma estrutura teórica defendendo a realização de gastos públicos para reativar a demanda agregada (soma de consumo mais investimento), sem aumentar a carga de impostos. Para Keynes, o governo deveria executar gastos com obras e mesmo programas sociais, e pagar com emissão de dinheiro, pois, conforme seus estudos publicados no livro conhecido como Teoria Geral, a existência de trabalhadores desempregados e a capacidade ociosa das empresas fariam que a elevação da demanda decorrente do programa de gastos do governo tivesse, como resposta, o aumento da produção de bens e serviços. Para ele, isso impediria a ocorrência de inflação, desde que, após vencida a recessão e recuperado o nível de emprego, o orçamento público voltasse ao equilíbrio.
Qualquer que fosse o governante neste ano de 2020, a gravidade da pandemia e o risco de desespero e tensões sociais levariam ao mesmo comportamento, isto é, aumento do gasto público
De outro lado estão os adeptos da chamada “escola austríaca”, cujos expoentes são os filósofos e economistas liberais Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich von Hayek (1899-1992), para quem a inflação é o aumento na quantidade de dinheiro e no volume de crédito derivado da emissão de dinheiro; o aumento de preços é a consequência causada pelo aumento da quantidade de dinheiro circulante, em geral derivado de déficits do governo. Ademais, praticamente todos os pensadores da escola austríaca afirmaram e seguem afirmando que é ingênuo crer que, após recuperada a atividade e reduzido o desemprego, o governo volte ao equilíbrio orçamentário. Não volta, e a prática passa a ser elevação da carga tributária e mais déficits financiados por dívida e novas emissões monetárias. Para eles, o resultado é sempre inflação.
A receita de Keynes ajudou a antecipar o fim da Depressão dos anos 1930, mas os alertas de Mises e Hayek se provaram proféticos nos anos 1970, quando o mundo estava eivado de países com déficits fiscais crônicos, dívidas públicas elevadas, emissões monetárias continuadas e inflação devastadora. Vale lembrar que o Brasil é organizado na forma federativa, com três entes autônomos: municípios, estados e União, sendo que estados e municípios não têm autorização para emitir moeda nem para lançar títulos da dívida pública, razão por que prefeitos e governadores pressionaram fortemente o governo federal pedindo ajuda para enfrentar os efeitos da pandemia.
No cenário político e econômico atual, surgiu novo debate entre os que condenam a emissão de moeda, por crerem que mais adiante a inflação e o empobrecimento aparecem, e os defensores da teoria conhecida pela sigla em inglês MMT, de modern monetary theory. Os adeptos dessa “teoria monetária moderna” afirmam que o governo federal não tem restrição financeira justamente por deter o direito de emitir moeda, e que tal emissão não causa necessariamente inflação. Essa corrente surgiu a partir da crise financeira mundial de 2008-2009, quando os bancos centrais, sobretudo o dos Estados Unidos, inundaram a economia de dinheiro e a inflação não veio. Os defensores da MMT alegam que o alto desemprego e a ociosidade na capacidade instalada permitem rápida reativação da produção capaz de atender o aumento da demanda derivado da expansão monetária; logo, a pressão sobre a oferta de bens e serviços neste caso não causa inflação.
No fundo, a MMT é a teoria keynesiana com outra embalagem, cujos adeptos dizem que um ente com poder de emitir dinheiro não está sujeito às mesmas restrições impostas às pessoas, empresas, estados e municípios, e que a emissão monetária para pagar o gasto público deve estar condicionada apenas aos princípios da necessidade, eficiência, relação custo/benefício e duração temporária enquanto houver recessão, desemprego e ociosidade de capacidade instalada. A recessão atual em função da pandemia deve gerar, em 2020, queda do PIB de cerca de 6% em relação ao ano anterior; o desemprego deve atingir 18% da população economicamente ativa; e a ociosidade de capital físico nos setores produtivos segue extremamente alta.
Não sendo a economia uma ciência exata e não havendo certeza absoluta sobre os vários efeitos de uma política governamental, o governo cedeu ao apelo político e social, desistiu do equilíbrio fiscal, está executando um ousado conjunto de obras públicas, principalmente em rodovias e ferrovias, e cumpriu o pagamento de auxílio emergencial de R$ 600 mensais para 65,1 milhões de pessoas em razão de desemprego, pobreza e perda de renda. Qualquer que fosse o governante neste ano de 2020, a gravidade da pandemia e o risco de desespero e tensões sociais levariam ao mesmo comportamento, isto é, aumento do gasto público.
Tirando fora do debate as preferências políticas e partidárias, mesmo alguns economistas de oposição afirmam que a expansão da moeda circulante não cria inflação sempre e necessariamente, e que o efeito inflacionário somente ocorre se houver falta de bens e serviços, ou seja, desabastecimento diante da demanda aumentada. Assim, eventual emissão de dinheiro de forma descontrolada poderia, sim, promover a volta do processo inflacionário e todo o estrago que ele faz. Nesse sentido, o problema essencial passa a ser como dosar e sincronizar no tempo a expansão monetária com o aumento do produto nacional. Esse debate é bom, necessário e útil para que a sociedade entenda pelo menos alguns aspectos do problema, principalmente para vigiar as contas do setor público quando a economia se recuperar. Os déficits públicos derivados de mais gastos não podem se eternizar, sob pena de o país voltar aos velhos e terríveis tempos da inflação crônica.
Reforma tributária eleva imposto de profissionais liberais
Sem Rodeios: José Dirceu ganha aval do Supremo Tribunal Federal para salvar governo Lula. Assista
Além do Google, AGU aumenta pressão sobre redes sociais para blindar governo
Quais são as piores rodovias do Brasil que estão concedidas à iniciativa privada