Quando uma pessoa acredita ter sido vítima de uma injustiça, é natural que busque formas de reparação ou ao menos expresse sua indignação com o ocorrido. No caso da greve dos educadores da rede estadual de ensino, mesmo que a categoria tenha aceitado encerrar a paralisação e voltar para as salas de aula, muitos professores não consideraram adequada a proposta de reajuste apresentada pelo governo do estado. Além disso, há o lamentável episódio de brutalidade e violência ocorrido na Praça Nossa Senhora da Salete em 29 de abril, que deixou mais de 200 feridos. Assim, é compreensível que muitos professores ainda sintam-se revoltados e expressem sua contrariedade, principalmente contra o governo estadual. O problema é quando essa indignação ultrapassa a esfera da liberdade de expressão, direito de todo cidadão, e entra nas salas de aula como doutrinação política, colocando a nobre função de ensinar a serviço de uma ideologia, seja ela qual for.
Em recente caso reportado pela Gazeta do Povo, dois professores de História de um Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos (Ceebja) de Almirante Tamandaré aplicaram uma avaliação aos seus alunos em que perguntavam, entre outras questões relacionadas à greve da rede estadual de ensino e o ocorrido em 29 de abril, “por que Beto Richa é contra a sociedade?”. A atividade, segundo os próprios mestres, fazia parte de uma ação mais ampla, que contou com a leitura de vários artigos opinativos escritos por um dos professores que aplicaram a avaliação e de debates em sala de aula. A intenção teria sido “despertar a consciência política nos alunos” e mostrar a greve “sob a ótica dos sujeitos” – no caso, os educadores. Segundo a APP Sindicato, os professores foram orientados a falar sobre a greve com os alunos, mas não a fazer aulas e aplicar provas e trabalhos sobre o assunto. Ainda assim, o sindicato defendeu a ação dos professores de Almirante Tamandaré, alegando não haver “incompatibilidade pedagógica no trabalho”. Não nos parece ser assim.
O educador tem influência sobre seus alunos e o risco de que o debate se transforme em mero monólogo doutrinário é muito grande
- A escola e a ideologização do ensino (editorial de 3 de dezembro de 2014)
- Exames sem ideologia (editorial de 14 de maio de 2014)
- A doutrinação sob a mira do parlamento (artigo de Miguel Nagib, publicado em 23 de março de 2015)
- Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar (artigo de Miguel Nagib, publicado em 25 de novembro de 2014)
- Educar é abarcar pluralidade de ideias (artigo de Janeslei Albuquerque, publicado em 25 de novembro de 2014)
- Em defesa de uma escola sem partido (artigo de Carla Pimentel, publicado em 10 de dezembro de 2014)
- A impossibilidade da ideologização do ensino (artigo de Raul Lucas Maciel, publicado em 12 de dezembro de 2014)
Tratar da batalha do Centro Cívico na escola é até esperado. Seria muito estranho que as aulas retomassem e houvesse um silêncio sepulcral sobre o caso. Mas outra coisa, muito preocupante, é transformar o tema em assunto de aula, como ocorreu em Almirante Tamandaré, porque isso introduz um perigoso desvio no currículo escolar. Até mesmo abordar o caso em uma aula de História (o que, à primeira vista, pode fazer sentido para muitos) é questionável, pois esta disciplina pressupõe um certo distanciamento temporal para que os fatos históricos sejam criticamente analisados; assim, seria inadequado tratar do episódio mesmo nesta situação, justamente pela ausência deste distanciamento. Com as feridas do conflito ainda abertas, houve a brecha para a imposição de um ponto de vista. Na avaliação feita no Ceebja, partiu-se já de uma afirmação – de que o governador é contra a sociedade – e só se permitiu aos educandos elaborar justificativas para uma conclusão já tomada.
A gravidade da situação é ainda maior quando se sabe que o confronto entre polícia e professores também tem um forte componente político. As simpatias (e antipatias) partidárias da APP e de muitos docentes não são segredo para ninguém. Esse fator torna ainda mais atraente a tentação de transformar aulas em ocasião de proselitismo político, voluntária ou involuntariamente, pois, dada sua posição, o educador tem influência sobre seus alunos e o risco de que o debate se transforme em mero monólogo doutrinário é muito grande. O caso de Almirante Tamandaré é apenas um; é preciso saber até que ponto essa atitude está ocorrendo em outras escolas de nosso estado.
Todo ser humano traz consigo certas convicções ideológicas, morais, políticas, e age de acordo com elas. Seria ingenuidade imaginar que seja possível a um professor despir-se totalmente dessas convicções quando entra em sala de aula para ensinar. Mas um docente responsável, verdadeiramente interessado por seus alunos, sabe que um debate salutar garante a existência e a expressão do contraditório, por mais polêmicos que sejam os temas em discussão. Desta forma, caminha-se para a construção de uma sociedade mais atenta e interessada em política e mais apta a participar dos debates e decisões dos rumos do país, com mais consciência crítica. Já quando a discussão política toma a forma de doutrinação, em que posições discordantes são simplesmente suprimidas para dar vez a uma única forma de pensamento ou posicionamento ideológico, tem-se o empobrecimento do debate democrático e, nos casos mais graves, o flerte com o autoritarismo. Certamente não é essa a lição que esperamos dos mestres paranaenses. Por mais feridos que eles estejam – e há razão para esse sentimento –, os educadores não podem sujeitar-se a apequenar sua missão de ensinar.