Se há uma marca do brasileiro que o caracteriza por onde passa, é aquela conhecida como “jeitinho”. A literatura sobre o assunto é farta. Do antropólogo Roberto DaMatta em O que faz o Brasil, Brasil? ao “homem cordial” propenso à informalidade, de Sérgio Buarque de Holanda, estudiosos se debruçam sobre um tema que funciona como se fosse duas facetas de uma moeda.
A primeira delas é encarar o “jeitinho” como aquela capacidade quase inata de improvisar, de buscar soluções criativas e contornar problemas, especialmente os criados por um Estado como o brasileiro, que tende a produzir normas que coagem e desarticulam a iniciativa dos cidadãos. Por essa concepção, o “jeitinho” se assemelha ao conceito aristotélico de “epiqueia” – a qualidade de contornar leis e regulamentos exagerados e injustos. Em outras palavras, por meio da epiqueia, um indivíduo descumpre o significado literal da lei e procura agir conforme o sentido mais profundo daquela regra. Esta faceta do “jeitinho” é até mesmo elogiável – sem ela, o brasileiro se veria paralisado em muitas situações, submerso pelo afã estatal de tudo regulamentar.
Parte dos brasileiros entende como aceitáveis condutas que jamais deveriam sê-lo
Mas o lado obscuro do “jeitinho” é precisamente aquele em que o cidadão assume a transgressão da norma, cometendo pequenos desvios no âmbito privado, ainda que alegue não ter a intenção de cometer crimes. É o tipo de comportamento que vai muito além da epiqueia aristotélica, adentrando a seara dos atos manifestamente ilícitos. Recentemente a Gazeta do Povo publicou reportagem que ilustra bem essa tolerância com as “pequenas corrupções”, a partir da análise de duas pesquisas que indicavam a dificuldade de parte dos brasileiros em compreender a noção de ética e distinguir o público do privado.
Conforme os estudos realizados pela Universidade de Brasília e pela Universidade Federal de Minas Gerais, parte dos brasileiros entende como aceitáveis condutas que jamais deveriam sê-lo, ainda que essas mesmas pessoas se mostrem horrorizadas com os grandes escândalos de corrupção – que, aliás, acabam servindo de justificativa para as pequenas transgressões, já que “tem coisa muito pior” que oferecer uma cervejinha ao policial, fazer um “gatonet” ou falsificar uma carteirinha de estudante (comportamentos que, segundo os estudos recentes, estão entre as condutas entendidas como aceitáveis por um em cada quatro brasileiros).
É verdade: o desvio de milhões de reais da administração pública é muito pior que uma mudançazinha na declaração do Imposto de Renda. Isso é evidente. Mas o centro da questão é a aceitação pacífica de comportamentos que jamais poderiam ser aceitáveis. Quando isso ocorre, abre-se espaço para uma cultura em que o outro vale muito pouco, em que a vantagem individual se torna muito mais importante que o bem comum. Esse clima de leniência é campo fértil para a grande corrupção, como a que vemos nestes sombrios tempos de Lava Jato. Para reverter este quadro, o combate à impunidade é essencial, mas não basta: é preciso promover uma mudança nas mentes dos brasileiros.