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Editorial

O Estado de Direito maculado

Congresso Nacional
Congresso Nacional, em Brasília (Foto: Pillar Pedreira / Agência Senado)

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O Estado de Direito significa o funcionamento da vida social sob o império da lei, não baseado na vontade discricionária dos homens e dos agentes públicos, e é o melhor sistema encontrado pela humanidade para estabelecer as regras de convivência social e as punições pelas violações devidamente provadas, sob o império de leis votadas por representantes do povo, legitimamente eleitos, e que tenham como princípios fundamentais o devido processo legal, o direito à ampla defesa, a presunção de inocência, o ônus da prova incumbido a quem acusa e o direito de recurso a grau superior, entre outros.

De início, cabe ressalvar que a lei não é qualquer norma emanada de autoridades públicas, como portarias e decretos executivos, pois não é o fato de uma norma simplesmente emanar de algum poder público que a torna legitimamente uma lei. A lei somente será autêntica se representar uma norma universal de conduta justa aplicável a um número desconhecido de casos futuros. O Estado de Direito significou expressivo progresso da civilização ao substituir o regime anterior, baseado na submissão do indivíduo à vontade de um único homem, o rei, o soberano.

O Brasil, infelizmente, é pródigo em situações que acabam atuando como tentativa de restabelecer o império de um homem só.

Nos regimes absolutistas, submetidos à vontade de reis ou imperadores, estes comumente exerciam a tirania pela qual as condenações e punições sem julgamento e sem direito de defesa eram atos rotineiros de governo. O Estado de Direito implica necessariamente que ninguém pode ser punido fora do processo legal, no qual seja garantido ao acusado o direito ao contraditório e à ampla defesa, e implica também que o agente da lei é obrigado e responsável pela obediência às etapas do processo legal. Nesse regime, a punição somente pode se dar caso a acusação seja provada por circunstâncias e meios previstos em lei, vedado o arbítrio pessoal da autoridade ou do juiz, porquanto eventual punição fora da lei e por mera vontade pessoal do juiz é similar à justiça feita com as próprias mãos.

Assim, o Estado de Direito em sociedade democrática requer a aprovação, pelos representantes do povo, de um código de leis que estipule os crimes e as punições e, também, de códigos processuais com as regras de acusação, defesa, provas, apresentação de atenuantes, agravantes e tudo o mais requerido para que as conclusões sobre materialidade, autoria, motivações, circunstâncias, agravantes e atenuantes sejam expressão da verdade, de forma a não restar dúvida sobre o delito, a autoria e todos os aspectos do fato.

Aceitar que um presidente, um ministro do STF ou um agente público isoladamente estabeleça normas necessárias à existência de um mínimo de civilização é ferir de morte a democracia.

Pela importância da vida, da liberdade e da propriedade, e para possibilitar a paz e o progresso, uma nação civilizada jamais pode admitir a aprovação de norma relacionada ao Estado de Direito e seus códigos fora do Poder Legislativo, no qual a população é representada por legisladores eleitos pelo voto livre, secreto e direto dos indivíduos. Nesse sentido, é casuística, condenável, inaceitável e contrária ao Estado de Direito qualquer imposição ou alteração, explícita ou implícita, da Constituição, do Código Penal, do Código de Processo Penal e demais cláusulas típicas do Estado de Direito por medida unilateral de qualquer autoridade pública.

Nessa mesma linha, muito menos podem quaisquer membros do Poder Judiciário, individual ou coletivamente, legislar ou alterar as bases e as normas do Estado de Direito, pois o juiz a quem fosse permitido criar regras perderia toda a isenção para seguir na função de julgador, pela óbvia razão de que é inválido o julgamento proferido pelo próprio feitor da norma que sustenta a sentença.

O Brasil, infelizmente, é pródigo em situações que acabam atuando como tentativa de restabelecer o império de um homem só. O Executivo tem as medidas provisórias, que, criadas para socorrer fatos determinados ocorridos em situação de emergência que requer solução pronta e rápida, acabaram se tornando norma legislativa baixada pelo presidente da República para qualquer assunto cotidiano sob mera vontade do governante. Já o Poder Judiciário vive uma epidemia de decisões monocráticas nas quais, por exemplo, a vontade de um único membro do Supremo Tribunal Federal triunfa sobre todo o resto, inclusive as deliberações de quase 600 representantes eleitos pelo povo no Congresso Nacional.

O Legislativo, aliás, analisa PEC que regula tais decisões monocráticas, despertando reação bastante extremada da parte de alguns ministros. Aceitar que um presidente da República, um ministro do STF ou qualquer agente público isoladamente estabeleça normas necessárias à existência de um mínimo de civilização é ferir de morte a democracia, o Estado de Direito e a possibilidade de vida social pacífica, em que as soluções dos conflitos se façam sob regras que respeitem a vida, a propriedade, a liberdade e a segurança dos cidadãos, além de prejudicar os esforços sociais na promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento social.

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