“Não seria interessante, a essa altura, tentar entender quem vota diferente?”, tuitou a jornalista Maria Beltrão, na noite deste domingo, quando a apuração do primeiro turno ainda não tinha sido concluída, mas já estava evidente que o presidente Jair Bolsonaro havia recebido uma votação bem superior àquela que as pesquisas de intenção de voto lhe concediam. Este é um convite que precisa ser aceito urgentemente por muitos brasileiros que cobrem um arco bastante amplo, que vai dos apoiadores de Bolsonaro que partiram para a desqualificação dos eleitores do Nordeste (onde o ex-presidente Lula venceu por ampla margem) até jornalistas e formadores de opinião que nem sempre conseguem enxergar motivos bastante legítimos e razoáveis para que dezenas de milhões de brasileiros tenham optado por Bolsonaro.
A votação de um candidato – qualquer candidato – é composta por um misto de adesão e rejeição. É assim com Lula, pois há os que compartilham de suas ideias e os que guardam uma boa memória de seu governo, mas também há os que votaram no petista mesmo discordando dele, recorrendo ao “voto útil” para derrotar Jair Bolsonaro logo no primeiro turno, pois consideraram mais importante impedir o atual presidente de permanecer no poder. E, se é assim com o ex-presidente, também o é para quem vota em Bolsonaro.
Onde está o “extremismo” em se defender, por exemplo, o direito à vida desde a concepção, considerando que é preciso proteger tanto a mãe quanto a criança por nascer?
Muitos eleitores que não consideram Bolsonaro a escolha ideal votaram nele guiados principalmente por sua rejeição ao que o petismo representa, por exemplo, em termos de corrupção, de ameaça à democracia ou de política econômica. E temos de perguntar: é realmente tão inaceitável assim que um eleitor não queira de volta no Palácio do Planalto os protagonistas do mensalão e do petrolão, os maiores escândalos de corrupção da história do país? Que um eleitor considere inaceitável o apoio explícito que o petismo deu e continua dando a ditaduras latino-americanas como a cubana, a venezuelana e a nicaraguense? Que o eleitor, tendo ainda na memória recente a recessão de 2015-16, não queira de volta os responsáveis pela política econômica que gerou a crise?
Setores da opinião pública manifestam revolta com os eventuais arroubos antidemocráticos de Bolsonaro, com sua defesa da ditadura militar brasileira, com o “orçamento secreto” e as “rachadinhas”, com os ataques a jornalistas, e estão no seu direito. Mesmo assim, não há como negar a corrupção petista, fartamente documentada na Lava Jato (ainda que as provas tenham se tornado inúteis para uso em um tribunal); nem que a gestão econômica petista trouxe resultados desastrosos; nem que o petismo faz acenos costumeiros a ditaduras de esquerda. Revoltar-se contra tudo isso a ponto de votar no candidato com mais chances de derrotar o petismo é tão legítimo quanto o voto em Lula motivado pela indignação com a forma como Bolsonaro vem governando. Este primeiro passo é fundamental no esforço de “entender quem vota diferente”.
Mas tal esforço não se resume a compreender mecanismos de rejeição; ele também precisa se estender à questão da chamada “pauta de costumes”, decisiva para muitos dos eleitores de Bolsonaro. Parte substancial dos formadores de opinião, por exemplo, defende o direito ao aborto, entendido como expressão da autonomia da mulher. Mas é tão absurdo assim que uma pessoa julgue ambas as vidas, da mãe e do bebê, dignas de igual proteção e merecedoras de todos os esforços para sua preservação? Que alguém considere que um ser humano indefeso e inocente tem o direito à vida, independentemente de tudo o mais, inclusive das condições em que foi gerado? É certo que não; o discurso pró-vida é algo perfeitamente razoável e defensável em uma sociedade democrática.
Da mesma forma, muitos consideram que o necessário e justo combate à discriminação contra a população LGBT passa pelo reconhecimento das uniões afetivas como equivalentes ao casamento, como ordenou o Conselho Nacional de Justiça na sequência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Mas há inúmeros brasileiros que, rejeitando frontalmente qualquer tipo de violência ou preconceito homofóbico, julguem que o matrimônio entre homem e mulher, por suas características especiais e por considerações de cunho ético-filosófico ou antropológico, mereça uma proteção especial da parte do Estado. Também esta é uma posição legítima e razoável, que merece carta de cidadania e respeito na arena pública. O mesmo pode ser dito de várias outras plataformas, como por exemplo a “tolerância zero” com as drogas, que tanto mal fizeram e fazem a inúmeras famílias, enquanto outros defendem a legalização do seu consumo.
Quando rótulos, prefixos e superlativos são usados com o objetivo de estigmatizar pessoas e excluir da arena pública alguma ou todas as propostas de cunho dito “conservador”, na verdade o verdadeiro extremista é quem abusa da desqualificação
Fato é que candidaturas como a de Jair Bolsonaro ofereceram tudo isso aos eleitores, e não foram poucos os que abraçaram o candidato de 2018 e o presidente de 2022 devido a estas plataformas. No entanto, por mais razoáveis que elas sejam, vêm merecendo de parte dos formadores de opinião e dos meios de comunicação a desabonadora classificação de “extremistas”, como se vê no uso frequente de expressões como “extrema-direita” ou “ultraconservadorismo”. Tal comportamento, no entanto, exige de imediato a questão: onde estaria o “extremismo”? Tratar dessa forma discursos que ao longo da história, em diferentes épocas e contextos, sempre foram entendidos como perfeitamente razoáveis, igualando-os, por exemplo, a doutrinas totalitárias ou que desumanizam os demais e negam-lhes dignidade, é errar completamente o tom. Quando rótulos, prefixos e superlativos são usados com o objetivo de estigmatizar pessoas e excluir da arena pública alguma ou todas as propostas de cunho dito “conservador”, na verdade o verdadeiro extremista é quem abusa da desqualificação.
“Entender quem vota diferente” é um mantra essencial se quisermos reconstruir pontes em um país dividido. Erra quem julga que o Brasil é feito de uma metade de cruéis comunistas, erra quem julga que o país tem uma metade de cruéis fascistas e extremistas de direita. E erra ainda mais quem quer banir, por força da desqualificação moral e de rótulos como o de “extremistas”, discursos razoáveis do debate público apenas por discordar deles. Não se pretende que os formadores de opinião concordem com ideias ditas conservadoras (embora isso, se ocorresse, seria muito positivo); basta apenas que reconheçam a razoabilidade dessas plataformas, que nada têm de “extremistas”. A incapacidade de conviver respeitosamente com ideias das quais se discorde, mas que são totalmente razoáveis, é sintoma preocupante de imaturidade e déficit democrático. Quem não for capaz de superar este tipo de preconceito jamais será capaz de “entender quem vota diferente”.
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