“Inexplicável”, a bem da verdade, é uma palavra branda demais para descrever a decisão tomada nesta segunda-feira pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), e que deixou o país todo em estado de perplexidade. Fachin concedeu um habeas corpus à defesa do ex-presidente Lula e anulou todos os processos que corriam contra ele na 13.ª Vara Federal de Curitiba ou que já foram ali julgadas, referentes ao tríplex do Guarujá, ao sítio de Atibaia e às duas ações relativas ao Instituto Lula. Todos os autos, agora, terão de ser remetidos à primeira instância no Distrito Federal, tudo porque o ministro resolveu ressuscitar argumentos já analisados (e rebatidos) à exaustão sobre a competência da 13.ª Vara para julgar as ações contra Lula.
O STF fatiou a Lava Jato o quanto foi possível, remetendo à Justiça Federal em outros estados, ou à Justiça Eleitoral, investigações e ações que resultaram da Lava Jato – a operação, lembremo-nos, desvendou o maior esquema de corrupção da história do país, em que o petismo organizou uma pilhagem sistemática de empresas estatais (especialmente a Petrobras), em conluio com empreiteiras e outros partidos, para fraudar a democracia brasileira e perpetuar um projeto de poder. No fim de tantos fatiamentos, ficou definido que a 13.ª Vara só teria competência para julgar casos que envolvessem a Petrobras. E é aqui que entra o argumento inusitado – para não dizer completamente incorreto – de Fachin.
Tanto os fatos quanto a jurisprudência construída sobre a competência da 13.ª Vara desmontam completamente a argumentação de Fachin
Para o ministro, o ex-presidente era apontado na acusação como o chefe da organização criminosa que assaltou o país e, por estar no comando, sua ação não se limitaria à Petrobras. Em outras palavras, eis o raciocínio: a Petrobras foi, sim, vítima de Lula; mas, como a lista de vítimas não se limita à estatal petrolífera, as ações contra ele não cumpririam os critérios para permanecer na 13.ª Vara – o que não faz o menor sentido como tese, pois criaria uma situação em que ações que tratam da Petrobras acabariam sendo tiradas de Curitiba para serem julgadas em outros locais, esvaziando a 13.ª Vara até naquilo que o próprio Supremo havia considerado ser sua competência. Afinal, jamais se decidiu que caberia à 13.ª Vara casos que dissessem respeito única e exclusivamente à Petrobras. O critério era bem mais simples: se a estatal petrolífera tivesse sido lesada (mesmo que ainda houvesse outras estatais ou órgãos governamentais envolvidas nos atos criminosos), os processos ficariam em Curitiba; só deixariam a capital paranaense os casos em que não houvesse menção à Petrobras.
Para sustentar sua decisão, por fim, Fachin afirmou que as ações contra Lula não tratavam especificamente da Petrobras. “Restou demonstrado que as condutas atribuídas ao paciente [Lula] não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A”, diz o ministro, acrescentando que “não cuida a exordial acusatória de atribuir ao paciente uma relação de causa e efeito entre a sua atuação como Presidente da República e determinada contratação realizada pelo Grupo OAS com a Petrobras S/A, em decorrência da qual se tenha acertado o pagamento da vantagem indevida”.
No entanto, o próprio Fachin incluiu em sua decisão trechos da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal no caso do tríplex, em que está claríssima a ligação entre os favores oferecidos pela empreiteira OAS e nomeações e contratos da Petrobras. Esta relação foi reconhecida em todas as instâncias nas quais Lula foi condenado – na primeira instância, pelo então juiz federal Sergio Moro, e no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, com o voto do relator João Pedro Gebran Neto sendo seguido pelos demais membros da 8.ª Turma, desembargadores Leandro Paulsen e Victor Laus. Por fim, o Superior Tribunal de Justiça, que manteve a condenação de Lula, também analisou os questionamentos sobre a competência para julgar o caso e concluiu que não houve irregularidade alguma ao se realizar o julgamento na 13.ª Vara. A mesma ligação com contratos da Petrobras foi estabelecida também no processo do sítio de Atibaia, sendo reconhecida pela juíza Gabriela Hardt, que substitiu Moro na 13.ª Vara, e pela 8.ª Turma do TRF-4. Tudo isso faz da decisão de Fachin aquilo que no linguajar jurídico se convencionou chamar de “teratológico”, ou seja, algo absurdo, monstruoso.
Se o resultado imediato da decisão é tornar Lula um “ficha-limpa” novamente, possibilitando que ele concorra à Presidência em 2022 (isso se até lá não for novamente condenado em duas instâncias no Distrito Federal), há um outro efeito colateral, desta vez positivo: a anulação das ações interrompe parte da campanha sistemática que alguns ministros da STF vinham conduzindo contra a Lava Jato, e que teria um momento crucial no julgamento da parcialidade de Sergio Moro na Segunda Turma. Fachin, que já havia rejeitado a suspeição, desmontou essa bomba-relógio ao tirar Moro do jogo, ao mesmo tempo reduzindo o peso das supostas mensagens atribuídas ao ex-juiz e aos procuradores da força-tarefa da Lava Jato, mas cuja autenticidade jamais foi comprovada.
Terá o ministro feito o que fez por dar como certo que Kassio Nunes Marques, o indicado de Jair Bolsonaro, faria a Segunda Turma decidir pela suspeição, com a consequente anulação das sentenças contra Lula e desmoralização da Lava Jato? Se assim for, independentemente da intenção, há um erro crasso nessa atitude. Decisões judiciais não podem ser tomadas por estratégia, mas com base unicamente nos fatos, e tanto eles quanto a jurisprudência construída sobre a competência da 13.ª Vara desmontam completamente a argumentação de Fachin. O correto seria negar o habeas corpus e deixar que a Segunda Turma cometesse uma enorme injustiça ao declarar a suspeição de Moro, assumindo a responsabilidade pelo erro, por mais daninho que isso fosse para o país.
Pois Fachin pode até ter poupado Moro, mas também livrou da vergonha seus colegas da Segunda Turma, enquanto ofereceu munição para outros adversários da Lava Jato, na política, na imprensa e na própria Justiça, reforçarem a narrativa mentirosa da parcialidade da operação e intensificarem seus ataques. A decisão, por fim, ainda reforça a insegurança jurídica que marca a atuação do STF nos processos do petrolão, com retrocessos sucessivos que consolidam o papel da corte como promotora não de justiça, mas de injustiças totalmente nocivas a um Brasil cansado de corrupção.
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