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Curitiba não é tão narcisista quanto o Rio de Janeiro, Salvador ou Porto Alegre, para citar três cidades brasileiras que adoram se olhar no espelho e falar de si mesmas. Mas está perto disso. E é bom que se diga – a vaidade curitibana, ainda que discreta, é uma qualidade a ser festejada nestas bodas de 317 anos, comemoradas hoje.

À revelia do lendário esporte local de "maldizer" – e maldizer com tal empenho que um dos logradouros mais famosos da capital paranaense atende pelo nome de Boca Maldita – uma nova cultura vingou na Terra dos Pinheirais: a de pensar o destino da urbe com a mesma paixão com que se esmera sobre o próprio destino. Nada mais contemporâneo. Nada mais a contento.

A Boca Maldita permanece em forma, é claro, como uma tradição do quilate do chá-mate ou da broa de centeio. A zona de maledicência da Avenida Luiz Xavier é palco das melhores picuinhas paroquianas de que se tem notícia. É também nosso simbólico "Muro das Lamentações", onde as mazelas políticas e sociais são choradas e postas à prova por impiedosas línguas afiadas.

Mas em paralelo à velha Boca se desenvolveu uma cidade que aprendeu a discutir arruamentos, violência, crescimento vertical, patrimônio e trânsito. Em embates decibéis acima, fala-se das últimas da Assembleia, fofoca-se o Palácio Iguaçu – ou se cometem inconfidências contra algum vizinho do Bacacheri –, mas também se arma uma tribuna para defender, ou para arruinar, a tradição das calçadas de pedra, a zona de estacionamento na Visconde de Guarapuava, a lerdeza do poder público em implantar ciclofaixas.

Não há segredo para a existência de tantos falastrões citadinos por metro quadrado. Desenvolveu-se aqui um Atletiba urbanístico, tão entranhado em nossa personalidade quando os "ês" ríspidos e os "nés" no final das frases. Não se sabe ao certo como tudo começou. Mas o palpite é que todo curitibano passou a se sentir meio urbanista depois do Plano Agache, na década de 1940. A vocação foi reforçada na década de 1960, quando o ex-prefeito Ivo Arzua virou a cidade de canelas para o ar – alargando ruas e canalizando rios. Culminou com a era Lerner, a que nos conquistou o título de laboratório de experiências urbanas bem-sucedidas e baratas.

Caminho sem volta. Além de referência em transporte, parques e políticas para pedestres – virtudes nem sempre respeitadas, como se sabe – Curitiba é o lugar em que a cissiparidade da Pracinha do Batel pode se tornar o assunto do ano; e onde a transformação da Dr. Gulin em binário quase reeditou a Guerra do Pente.

Talvez Curitiba seja única no quesito. Vale um palpite: destituída da luxúria paisagística de cidades como o Rio, e da efervescência política de cidades como Porto Alegre, coube à capital do Paraná encontrar sua identidade nas pranchas dos arquitetos. Essa "mania" dá muito trabalho aos gestores públicos, obviamente, mas, se incentivada, tende a ser garantia de saúde municipal, em especial neste momento em que as cidades de médio porte do planeta são as que mais crescem e as que mais se descaracterizam.

No aniversário dos 317 anos de Curitiba, por essas e outras, o que se pode pedir é que a cidade continue sendo o tema discutido em nossos cafés da tarde com chineque. Porque não há nada mais urgente do que isso. Como diz o historiador Giulio Carlo Argan, em seu magnífico A história da arte como história da cidade (Martins Fontes, 1992), a cidade é a maior invenção do homem. Nela, dão-se as melhores trocas. O saber está concentrado na urbe. E na urbe os encontros mais inesperados são possíveis. Falem de Curitiba. Eis a pedida.

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