Na manhã de sábado, a Polícia Federal prendeu o general Walter Braga Netto, por ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes, dentro do inquérito que investiga uma suposta trama golpista que seria colocada em prática após a vitória de Lula nas eleições de 2022, com o objetivo de manter no poder o então presidente, Jair Bolsonaro. Braga Netto, que havia sido ministro-chefe da Casa Civil, ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro, se tornou o primeiro general-de-exército (a mais alta patente do Exército brasileiro, já que o posto de marechal só existe em tempo de guerra) a ser preso no Brasil em mais de um século – antes dele, o único caso semelhante fora o do marechal e ex-presidente Hermes da Fonseca, curiosamente também ocorrido em um contexto de questionamento de resultados eleitorais, em 1922. Após a audiência de custódia, Moraes manteve a prisão preventiva, mas as circunstâncias em que ela ocorreu mostram que muito provavelmente estamos diante de um novo caso de abuso desse instrumento, uma prática que infelizmente se tornou a regra no Brasil pós-8 de janeiro.
Diz o artigo 312 do Código de Processo Penal que a prisão preventiva pode ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. O risco de que o investigado continue a cometer crimes, tente fugir do país, destrua provas ou procure outros investigados para coagi-los, por exemplo, justifica a decretação da prisão preventiva, que só pode ocorrer se existir ao menos um dos fatores previstos na lei – o que, no entanto, não ocorreu no caso de Braga Netto, a julgar pela decisão que mandou prendê-lo.
Um exemplo disso é a ausência da possibilidade de o investigado seguir delinquindo. Para efeitos de prisão preventiva, pouco importa que, de acordo com o relatório da Polícia Federal, Braga Netto teria levado dinheiro que seria usado na suposta tentativa de matar Moraes, pois se trata de algo que ocorreu há mais de dois anos, e já não existe o menor risco de que algo semelhante esteja sendo tramado neste momento. Situação diferente seria a de uma possível obstrução de Justiça. Braga Netto poderia estar destruindo documentos importantes para a averiguação da existência da conspiração golpista; entrando em contato com outros investigados para, por exemplo, combinar versões a apresentar em depoimentos; ou tentando convencer alguém a não delatar. Tudo isso, de fato, justificaria um decreto de prisão preventiva. A pergunta é: algo assim vinha ocorrendo?
Se toleramos que alguém seja preso com uma argumentação tão frágil, abre-se a porta para a desvirtuação completa do instituto da prisão preventiva
A ordem de prisão emitida por Alexandre de Moraes repete trechos do relatório da PF sobre as supostas movimentações realizadas no fim de 2022, provavelmente para estabelecer o “indício suficiente de autoria” que o CPP também exige como condição para a prisão preventiva. No entanto, a única informação ali presente quanto a uma suposta ação de Braga Netto em relação às investigações é a de que o general havia tentado, em 2023, conseguir informações sobre o acordo de delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e peça-chave nas investigações. Não há registro de nenhum tipo de coação, ameaça, nem mesmo qualquer indício de que Braga Netto tivesse tentado dissuadir Mauro Cid de fazer a delação premiada; no máximo, há um documento com perguntas e respostas (atribuídas a Mauro Cid) sobre sua colaboração, e registros de comunicações entre o general e o pai do ex-ajudante de ordens.
Para a PF atual, no entanto, isso basta, pois o resto se completa com ilações – como bem sabe a família Mantovani, outro alvo de Alexandre de Moraes. Se Braga Netto queria informações sobre a delação de Mauro Cid, seria para “controlar as informações fornecidas, alterar a realidade dos fatos apurados, além de consolidar o alinhamento de versões entre os investigados”, e para “tranquilizar os demais integrantes da organização criminosa de que os fatos relativos aos mesmos não estariam sendo repassados à investigação”. Se o pai de Mauro Cid, também militar, diz não se lembrar se Braga Netto havia lhe perguntado sobre a delação do filho, isso basta para a PF afirmar que “a hesitação em confirmar o contato (...) reforça a interferência de Braga Netto sobre o colaborador e seus familiares”. Nenhuma dessas afirmações é corroborada por outros depoimentos ou mensagens, elementos que seriam imprescindíveis para que se confirmasse a intenção que a PF atribui aos citados em seu relatório.
Querer buscar informações sobre uma investigação está muito longe de atuar para dificultar ou bloquear a ação das autoridades, mas mesmo quem tem uma interpretação totalmente elástica do conceito de “obstrução de Justiça” haverá de se deparar com outro problema. A prisão preventiva exige que a ameaça – de fuga, de novos crimes, de obstrução de Justiça – seja presente, não passada. A PF afirma que Braga Netto “vem atuando reiteradamente para interferir nas investigações” e que “não há como garantir que as condutas criminosas tenham sido cessadas”, mas não oferece um único indício que sustente tal afirmação; não há uma única descrição de fato ocorrido em 2024, quanto mais nas últimas semanas ou últimos dias. Ainda que certas informações tenham vindo à tona apenas recentemente, por meio de depoimentos dados em dezembro, não se trata de “fatos novos”, mas de “fatos antigos” só agora revelados. Enfim, são tantas as lacunas, deficiências, inconsistências e erros de interpretação que que a prisão preventiva não se justifica, como bem lembraram vários juristas ouvidos pela Gazeta do Povo.
Por tudo isso não há como aceitar a prisão de Braga Netto como algo normal. Retirar preventivamente a liberdade de uma pessoa, sem condenação judicial, é algo extremo que exige o cumprimento de todos os critérios legais e uma fundamentação robustíssima que justifique esse tipo de medida. Independentemente da gravidade do crime que está sendo investigado, se toleramos que alguém seja preso com uma argumentação tão frágil, repleta de ilações, com fatos que não configuram obstrução de Justiça, nem qualquer tipo de ameaça atual, abre-se a porta para a desvirtuação completa do instituto da prisão preventiva, para a arbitrariedade, para o fim do devido processo legal.
Mauro Cid, aliás, foi o pivô de um outro episódio que pode ajudar a entender a maneira como o STF tem conduzido as investigações relativas a supostas tentativas de manter Bolsonaro no poder. Cid havia sido preso preventivamente em 2023, durante investigações sobre uma possível falsificação em cartões de vacinação da família Bolsonaro; em setembro daquele ano, foi solto após fechar um acordo de delação premiada. No entanto, Cid voltou para a cadeia após o envio de áudios insinuando, entre outras coisas, que teria sido coagido a dizer o que as autoridades gostariam de ouvir. A respeito de Moraes, Cid dizia nos áudios que o ministro “é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele quiser”, e que “já tem a sentença dele pronta. Só tá esperando passar um tempo. O momento que ele achar conveniente, denuncia todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende todo mundo”. Esse vaivém dá motivos suficientes para acreditar que Moraes esteja usando a prisão preventiva como meio de obter colaborações: quem ajuda fica livre; quem tumultua vai (ou volta) para a prisão. Estaria o ministro pretendendo fazer o mesmo com Braga Netto? Ou sua intenção seria a de fazer do general um exemplo, como fez com centenas de brasileiros que viveram meses de injustificada e abusiva prisão preventiva após o 8 de janeiro, para manter a espada de Dâmocles sobre outros envolvidos, especialmente Bolsonaro?
Em qualquer dos casos, trata-se de abuso flagrante. Prisão preventiva não é meio de forçar colaborações – algo de que, aliás, a Operação Lava Jato foi injustamente acusada inúmeras vezes por ministros do STF. Também não é um equivalente moderno da prática bárbara de exibir os cadáveres de condenados nas ruas, como maneira de dissuadir os demais e mostrar o que acontece a quem contestar o regime. Tampouco serve como antecipação de uma futura condenação, que a essa altura parece certa, já que o STF, quando age como corte criminal, já lançou ao cesto de lixo os princípios mais básicos do direito. A alegada trama golpista precisa ser investigada com todo o critério possível – a bem da verdade, as investigações já haviam até terminado, embora no Brasil de Alexandre de Moraes tudo possa ser reaberto a qualquer momento. Apelar a medidas abusivas pode até saciar a sede de sangue de setores políticos e da opinião pública, mas não ajuda em nada a “salvar” a democracia das ameaças contra ela – as reais e as imaginárias.