Uma característica fundamental da democracia é o respeito à liberdade de expressão; sociedades democráticas e maduras garantem o direito à manifestação das opiniões, e incentivam o debate de ideias. Regimes e grupos totalitários, avessos ao debate, preferem tolher o direito à opinião; só pode falar quem comunga das mesmas convicções, enquanto os demais são calados, usando-se para isso os meios que forem necessários. A Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), na Bahia, viveu momentos que remetem ao fascismo no dia 26 de outubro, quando manifestantes conseguiram calar dois palestrantes.
O sociólogo Demétrio Magnoli e o filósofo Luiz Felipe Pondé estavam entre os convidados do evento. Ambos são colunistas do jornal Folha de S.Paulo, e Magnoli também escreve quinzenalmente em diversos jornais, inclusive na Gazeta do Povo. O sociólogo participava da mesa-redonda "Donos da terra? os neoíndios, velhos bons selvagens", ao lado de Maria Hilda Baqueiro Paraíso, na manhã do dia 26, quando algumas dezenas de manifestantes que estavam na plateia começaram a gritar palavras de ordem contra Magnoli, além de se despir e atirar uma cabeça de porco no palco. O tumulto impediu que a mesa-redonda continuasse, mas isso não foi suficiente para satisfazer o grupo, que exigiu também o cancelamento de um outro debate, programado para a noite, que teria a participação de Pondé e do sociólogo francês Jean-Claude Kaufmann, com o tema "As imposições do amor ao indivíduo". A organização do evento cedeu, alegando não ter como garantir a integridade física tanto de Magnoli quanto de Pondé.
O que atraiu a hostilidade dos manifestantes foi o simples fato de ambos serem críticos contumazes das ideologias de esquerda. Para os fascistas que tumultuaram a Flica, isso basta para que Magnoli e Pondé não tenham o direito à palavra, e em nome desse objetivo vale desde acusá-los de crimes (os manifestantes chamaram os colunistas de "racistas", por sua posição contrária à política de cotas) até ameaçá-los fisicamente, como ocorreu na Bahia. Na internet, sites e comentaristas demonstraram apoio à hostilidade contra Magnoli e Pondé.
A vida intelectual brasileira sofreu, por décadas, com o monopólio de um discurso único primeiro, com a censura do regime militar ao pensamento de esquerda; depois, com a aplicação de um gramscismo antidemocrático que marginalizava o discurso de oposição ao ideário socialista. O pluralismo crescente dos últimos anos nas universidades e entre a opinião pública é um fenômeno bem-vindo, e qualquer intelectual digno do nome, independentemente de adesão ideológica, tem o dever de defendê-lo aliás, essa é uma obrigação não apenas dos pensadores, mas de todo cidadão de boa vontade. É por meio do embate livre e sadio de ideias que a jovem democracia brasileira pode progredir.
E justamente quando o cenário intelectual brasileiro começa a ganhar com o pluralismo, surge uma minoria fascista cujo DNA totalitário a impele não a partir para o debate, mas para o patrulhamento e para a agressão. Hoje, é assim contra Magnoli e Pondé; ontem, foi assim contra a blogueira cubana Yoani Sánchez; como impedir que amanhã seja assim contra qualquer outro que ousar divergir?
A perspectiva, à primeira vista, não parece animadora. Por mais que a organização da Flica tenha convocado a segurança para proteger Magnoli, isso não foi suficiente para garantir sua participação, e os eventos foram cancelados. Ou seja, os manifestantes conseguiram o que desejavam. A mensagem que isso manda a quaisquer outros que estejam pensando em ações semelhantes é a de que agir assim dá resultado. Seria a consagração da violência como estratégia de ação política, adotada também pelos black blocs que vêm causando tanto transtorno em várias metrópoles. Mas, felizmente, os neofascistas são uma minoria; ainda há tempo para um repúdio firme e unânime a essas atitudes por parte dos intelectuais, dos políticos, enfim, de todos os cidadãos comprometidos com a democracia e a liberdade de expressão, de todas as correntes ideológicas e partidárias. Assim poderemos frear esses vândalos da vida intelectual brasileira.
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